O paradoxo do ovo e da galinha
A ontologia recapitula a filogenia
Guido Imaguire - Universidade de Munique
1. Introdução: o significado dos paradoxos
Há mais de vinte séculos paradoxos de todas as
espécies oferecem material para a reflexão de
lógicos e filósofos desafiando a nossa racionalidade.
Mais tardar no século 20 se tornou claro que a
ocupação minuciosa com paradoxos não serve apenas para
satisfazer a nossa curiosidade, mas que ela
também tem um grande valor para a investigação
científica em geral. A descoberta da antinomia de
Russell e toda a discussão sobre os fundamentos da
aritmética que a sucedeu são prova suficiente
disto. No contexto destas discussões Ramsey distinguiu
os paradoxos semânticos dos paradoxos
lógicos. No entanto, além dos paradoxos lógicos e
semânticos existe uma terceira espécie de
paradoxos que, infelizmente, têm chamado menos atenção
dos filósofos. Eles poderiam ser chamados
de paradoxos empíricos. A este grupo pertence o
famoso paradoxo do ovo e da galinha, tido como o
paradigma de todas as questões sem resposta possível:
Quem existiu antes, o ovo ou a galinha? É esta
questão realmente um paradoxo? E por quê? A aparente
banalidade desta questão não deve nos levar a
um menosprezo preconceituoso sobre o possível valor
lógico desta questão; também o paradoxo do
mentiroso (“eu estou mentindo agora”), que ocupou
Russell vários anos parecia ser a primeira vista
sem valor para o lógica.
Existem várias maneiras de se criar paradoxos: fazendo
uso de expressões vagas (os chamados
paradoxos sorite), com circularidade ou
auto-referência (“eu estou mentindo”), com divisão infinita (o
paradoxo de Zenon), etc. Quine sugeriu em seu livro The
Ways of Paradox uma classificação,
distiguindo neste contexto entre paradoxos verídicos,
falsídicos e antonomias:
Um paradoxo verídico causa uma surpresa, mas a surpresa
desaparece rapidamente quando se analisa a prova. Um
paradoxo falsídico causa uma surpresa, mas se revela
como um falso alarme quando se soluciona a falácia que o subjaz.
Uma antinomia, porém, causa uma surpresa que não pode
ser acomodada a não ser com o repúdio de parte da nossa
herança conceitual. (1961: 9, tradução própria)
Mas Quine mesmo mostrou a relatividade da sua própria
classificação: de acordo com a premissa
implícita, o mesmo paradoxo pode ser considerado
verídico, falsídico ou até mesmo uma antinomia.
De fato, nós veremos que o paradoxo do ovo e da
galinha revela diferentes estruturas lógicas. Num
determinado enfoque ele pode ser considerado uma
antinomia genuína, num outro ele pode ser
considerado uma variante dos paradoxos de Sorite. O
objetivo deste pequeno artigo é, no entanto, não
apenas uma mera análise lógica e classificação deste
paradoxo, mas sim, bem mais pretencioso: a
sugestão de uma solução positiva desta antiga questão.
Depois de constatar a insuficiência de um
tratamente puramente conceitual, atingiremos uma
primeira resposta numa análise ontológica, a qual
será confirmada, finalmente, numa perspectiva
biológica.
Mas antes de se ocupar com uma questão, é recomendável
assegurar-se que ela é bem formulada e
dotada de significado. Isto significa, em primeira
linha, que uma resposta é, pelo menos a princípio,
possível. Nós devemos evitar assim a ocupação com
questões que os neopositivistas chamaram no
início do século de pseudoproblemas
(“Scheinprobleme”), os quais infestam nosso discurso
filosófico.1 Existem várias teorias que nos auxiliam neste exame de
significação. A estratégia mais
usual é puramente intencionalista: Têm a questão um significado
(no sentido intencional - inglês:
1 É claro que com
isto não se pretende retomar uma posição neo-positivista. A filosofia analítica
logo percebeu o erro de
considerar todas as questões da metafísica como sendo
automaticamente pseudo-questões. Apenas admito aqui que não se
pode, fundalmentalmente, dizer que todas as questões
formuláveis a nível da linguagem natural são automaticamente dotadas
de sentido.
2
meaning;
alemão: Bedeutung) ? Não se pode negar que nós podemos entender o
significado - a
intenção - da questão do ovo e da galinha. Assim
também podemos entender as repostas possíveis: “a
galinha existiu antes”, ou “o ovo existiu antes”, ou
até mesmo “ovo e galinha surgiram
simultaneamente no mundo”. De acordo com este ponto de
vista, não parece haver nenhum motivo
porque não se poderia estudar esta questão
detalhadamente. Mas se alguém, como Quine (1960: §40),
rejeita tais entidades intencionais como
“significado”, ele precisa encontrar um outro critério para
identificar pseudo-problemas.
Uma segunda possibilidade se coloca nos quadros da
teoria do verificacionismo. Mas também de
acordo com a teoria verificacionista não se pode
rejeitar a questão como não significativa. Se o
significado de uma sentença é o método da sua
verificação, então a nossa questão é evidentemente
legítima. Mesmo se nós não somos capazes de responder
esta questão corretamente, ovos e galinhas
são entidades empiricamente acessíveis. Parece claro
que, a princípio, mesmo que concretamente não
realizável, é possível (isto significa para os
verificacionistas: é uma questão empírica) descobrir onde
e quando existiu o primeiro ovo ou a primeira galinha.
Ainda poderíamos nos recordar da advertência do
segundo Wittgenstein e dos seus discípulos de
Oxford: “Você não entendeu as regras da linguagem se
você procura uma resposta para esta questão.
Pois quem coloca tal questão não esta esperando
realmente uma resposta: ele está apenas jogando um
jogo de linguagem e pretende assim apenas indicar uma
labirinto curioso, para o qual não há saída.”
Mas mesmo que a questão pertença a um Sprachspiel da
linguagem ordinária, nós podemos assumir a
tarefa de contiunar o jogo e quebrar uma parede do
labirinto a fim de construir uma saida, libertando
assim a humanidade da agonia da ignorância.
2 A análise conceitual
Para iniciar, observemos as seguintes definições
arbitrárias de ovo e galinha que parecem estar
implícitas na intuição humana normal:
(Df. G) Uma galinha é uma ave que cresce de um ovo de
galinha.
(Df. O) Um ovo (de galinha) é um ovo que é posto por
uma galinha.
Estas definições juntas fazem uma resposta para o
paradoxo impossível. Se nós a aceitamos, somos
forçados a aceitar a questão do ovo e da galinha como
uma antinomia real e insolúvel (ou melhor,
somente solúvel com a abdicação da nossa lógica
clássica). Mas nem a definição (Df. G) nem (Df. O)
são realmente adequadas: elas não representam nem
nossas intuições lingüística nem definições
científicas da biologia contemporânea. Postular
definições adequadas para entidades empíricas é
certamente uma tarefa muito difícil. É melhor evitar
tais definições arbitrárias e tentar encontrar algo
como uma condição necessária para que algo possa ser
considerado uma galinha, respectivamente, um
ovo.
Como podemos caracterizar ovos e galinhas? Primeiro o
ovo: Ovos de galinha tem em geral várias
características que são irrelevantes para os nossos
propósitos: têm uma casca lisa, uma forma
aproximadamente esférica, etc. Estes atributos são
irrelevantes porque não são nem necessários
(mesmo que não hajam exceções, segundo meu saber), nem
são elas distintivas em relação a ovos de
outras aves (por exemplo de ovos de patos). Para a
análise da nossa questão existem, porém, duas
condições que parecem ser centrais:
Um ovo de galinha é
(CO1) um ovo do qual cresce uma galinha.
(CO2) um ovo que é posto por uma galinha.
3
(CO1) poderia ser precisado com a introdução da
expressão modal “pode” (“um ovo, do qual pode
crescer uma galinha”), posto que nem de todos os ovos
crescem realmente galinhas adultas: eles
podem quebrar-se ou ser devorados. Esta triste possibilidade
(assim como os ovos não fecundados)
podem ser negligenciados para os nossos propósitos
lógicos. Nós veremos adiante que isto não tem
relevância alguma para a solução que será proposta
aqui. No caso normal (e no sentido da expressão
“ovo” neste artigo) nós tratamos de ovos que preenchem
estas duas condições. Do outro lado, existem
duas condições similares para as galinhas:
Uma galinha é
(CG1) uma ave que cresce de um ovo de galinha.
(CG2) uma ave que põe ovos de galinha
Repare: Todas as quatro condições juntas não
constituem uma antinomia. A origem do paradoxo do
ovo e da galinha se encontra na limitação do tempo na
seqüência de ovos e galinhas no passado. Estas
condições não seriam problemáticas se nós pudéssemos
aceitar que existem ovos e galinhas desde a
eternidade. Mas nós temos de rejeitar esta hipótese
tendo em vista o conhecimento das ciências
naturais: galinhas e ovos não existem desde a
eternidade.
Comecemos com uma análise lógica destas condições. CO1
e CG1 parecem ser equivalentes,
assim como CO2 e CG2. Mas apenas aparentemente. Uma
soluçao ad hoc para o paradoxo implicaria
que existe um caso, no qual uma destas condições
falha, mas não a outra aparentemente equivalente.
Se primeiro havia a galinha (a “hipótese-G”), então
havia certa vez uma galinha, a qual não cresceu de
um ovo de galinha. Neste caso CG1 falha, e CO1
continua válida, pois esta postula apenas que de
ovos de galinha crescem galinhas, e não, que apenas
de ovos de galinha podem crescer galinhas. Do
outro lado, se primeiro havia um ovo (a “hipótese-O”),
então havia certa vez um ovo de galinha, que
não foi posto por uma galinha. CO2 falha e CG2
permanece válida, pois ela não assume, que apenas
galinhas podem por ovos de galinhas. Nós temos assim:
A hipótese-G: requer a rejeição de CG1, mas não de
CO1. A hipótese-G é compatível tanto com CO2
com com CG2
A hipótese-O: requer a rejeição de CO2, mas não de
CG2. A hipótese-O é compatível tanto com CO1
como com CG1.
Depois desta curta análise nós já alcançamos bastante:
Nós sabemos agora que a solução depende da
alternativa entre CG1 e CO2. Mas qual destas condições
nós podemos abdicar? Se CG1 (uma galinha
cresce sempre e necessariamente de um ovo de galinha)
é uma condição necessária, então a galinha
existiu antes. Se CO2 (um ovo de galinha é sempre e
necessariamente posto por uma galinha) é uma
condição necessária, então a galinha existiu antes.
Permaneçamos ainda por um momento no reino dos
conceitos. Se nós esquecermos a famosa
crítica de Quine em Two Dogmas of Empiricism à
noçao de analiticidade por uma momento, nós
podemos tentar encontrar uma solução para o paradoxo
na aplicação desta noção. Se uma das
condições decisivas é analiticamente verdadeira e a
outra não, então nós temos uma resposta imediata
para a nossa questão. Carnap (1963:920) elaborou um
teste para analiticidade muito interessante, que
poderia ser aplicado aqui. A situação seria então
esta: O defensor da hipótese-G anuncia a um falante
do português:
(TG) Eu encontrei em minhas investigações
arqueológicas restos de uma galinha, a qual não
cresceu de um ovo de galinha. Venha ao meu laboratório
e eu mostrarei para você.
4
Se o falante responde: “Assim que eu ver, acreditarei
que houve uma vez uma galinha que não
cresceu de um ovo de galinha”, então CG1 não é
analiticamente verdadeira, e assim possivelmente
falsa. Mas se o falante responde: “uma galinha que não
cresceu de um ovo de galinha é uma
contradição nos quadros da minha linguagem.
Aparentemente nós usamos diferentes linguagens (ou
conceitos)”, então CG1 é analiticamente verdadeira e a
hipótese-G errada. Do outro lado, o defensor
da hipótese-O anuncia:
(TO) Eu encontrei em minhas investigações
arqueológicas restos de um ovo de galinha, o qual não
foi posto por uma galinha. Venha ao meu laboratório e
eu mostrarei a você.
Como no primeiro caso, o falante pode assumir CO2 como
analítico (“Isto não é possível, nós usamos
diferentes linguagens ou conceitos”) ou sintético (“eu
estou muito surpreso, mas depois de ver este
estranho ovo eu acreditarei e vou revisar minhas
suposições anteriores”). Em ambos casos não é
possível encontrar uma resposta definitiva.
Possivelmente algumas pessoas considerariam TG
analiticamente falsa, outros rejeitariam TO. Pior
ainda: é completamente possível que um falante
competente considere tanto TG quanto TO erradas. O
fato que a maioria das pessoas considera o
paradoxo do ovo e da galinha uma questão sem solução é
certamente um sinal para isto. Esta é de fato
a fraqueza do teste de Carnap, como Quine apontou
corretamente.
Nós podemos supor que o falante normal não é
competente o suficiente para decidir a questão.
Neste caso nós poderíamos perguntar um especialista da
linguagem, um filólogo. Ele poderia nos
ajudar a decidir se a expressão “ovo de galinha” é um genitivus
subiectus ou um genitivus obiectus, ou
melhor, é um ovo de galinha um ovo posto por um
galinha, ou um ovo do qual cresce uma galinha?
Mas a filologia não poderia trazer nada mais do que o
senso comum já trouxe. A resposta provável do
filólogo seria, “ovo de galinha” é um genitivus
subiectus: significa “um ovo posto por uma galinha”.
Mas a filosofia não é uma ajuda verdadeira. Se um
cisne crescer deste ovo, nós certamente
suporíamos que este era, mesmo tendo sido posto por
uma galinha, desde sempre um ovo de cisne.
Uma decisão definitiva parece ser impossível nesta
espécie de análise da analiticidade. Seriam
realmente muito surpreendente se nós pudéssemos
resolver um problema empírico apenas com um
recurso à análise lingüística ou conceitual.
Surpreendente, mas não impossível, se nós pudermos supor
alguma informação empírica, juntamente à qual a
análise conceitual ou lingüística nos levaria a uma
resolução. Mas nós queremos, assim como Quine,
abandonar este mundo do significado e avançar
para uma esfera mais promissora, a esfera diretamente
ontológica.
3 O enfoque ontológico: identidade e procriação
Nós já constatamos: a decisão entre a hipótese-G e a
hipótese-O precisa ser encontrada na
alternativa, qual condição nós estamos dispostos a
abrir mão: CG1 ou CO2. Houve uma “galinhaoriginal”,
a qual não cresceu de um ovo de galinha? Ou houve um
“ovo-original” o qual não foi posto
por uma galinha?
É chegado o momento de propor a minha solução: De um
ponto de vista ontológico-metafísico a
hipótese-O (do ovo) parece ter claramente os melhores
argumentos. O paradoxo do ovo e da galinha
pode ser representado no seguinte esquema (S1):
(S1) ?... ® G ® O ® G ® O ....
Claro que as setas neste esquema não representam uma
implicação lógica no sentido usual. Elas
representam aqui apenas a relação intuitiva de
sucessão no tempo. A solução do paradoxo requer que
nós quebremos esta corrente em algum lugar. Mas onde?
Antes de um G ou de um O? Analisemos
CG1 und CO2:
5
(CG1) uma galinha é uma ave que cresceu de um ovo de
galinha
(CO2) um ovo de galinha é um ovo que foi posto por uma
galinha
É óbvio que a relação entre ovos e galinhas (nesta
ordem) não é a mesma que a relação entre galinhas
e os ovos. Uma galinha cresce de um ovo e uma
galinha põe um ovo. Nós podemos expressar isto nos
quadros da antiga tradição aristotélica: Um ovo é
exatamente a mesma substância (substancia prima)
que a galinha que dele cresce, a galinha, por outro
lado, não é a mesma substância que o ovo, que ela
põe. O feto Aristóteles precisa ser identificado com a
pessoa adulta Aristóteles, mas nem seu filho
nem a sua mãe podem ser identificados com ele. Existem
várias teorias atuais que tratam da questão
da identidade de um indivíduo através do tempo, mas
nenhuma destas teorias afirma que a mãe de
Aristóteles tem “maior identidade” (se alguém aceita
diferentes graus de identidade, o que não é o
meu caso) com ele, do que o feto e a criança
Aristóteles com o adulto.
O uso do conceito de substância é aqui historicamente
bem fundamentado, posto que organismos
biológicos foram em quase todos os grandes sistemas
metafísicos (p.e. Aristóteles, Descartes,
Leibniz) os paradigmas de substâncias per excellence.
Claro que nós poderíamos abdicar do conceito
de substância, o qual é muito suspeito para muitos
filósofos contemporâneos, e tomar ao invés dele o
conceito de indivíduo. O argumento permaneceria
assim exatamente o mesmo. Entre o ovo e a
galinha, que dele se desenvolve, subsiste a relação de
identidade através do tempo, como entre a
criança e a pessoa adulta. Característico tanto para a
substância como para o individuo são as noções
de unidade e identidade através do tempo.2 Por outro lado,
a relação entre o ovo e a galinha que o pôs
é apenas a relação entre duas entidades diferentes,
como entre mãe e filho. Por isso não podemos usar
para as duas relações o mesmo símbolo:
(S2) ?..... Þ G ® O Þ G ® E ...
Ou talvez ainda mais claro:
(S3) ?..... Þ G ¯
O Þ G ¯
O Þ G ...
Aqui “Þ” significa “cresceu de”, e “®” significa “pôs”. Quando uma corrente se rompe, então
sempre no elo mais frágil. E agora nós encontramos o
elo, respectivamente, a relação mais fraca:
“pôr” é mais fraco que “crescer”, pois esta é uma
forma de identidade, aquela não. O ovo é idêntico à
galinha (relação Þ), a galinha não é
idêntica ao ovo que ela coloca (relação ®). Os degraus no
esquema S3 representam uma espécie de salto
ontológico. Assim a resposta para a questão, onde a
corrente quebra, tem de ser: ®, imediatamente antes da galinha: o ovo existiu antes da galinha.
Nós temos de admitir que ambas noções são
anti-intuitivas: uma galinha que não cresceu de um
ovo de galinha, e um ovo de galinha que não foi posto
por uma galinha. Mas eu penso que a primeira
é menos provável que a segunda. Alguém poderia dizer,
um ovo poderia eventualmente não crescer e
se tornar uma galinha (ele poderia quebrar), enquanto
um ovo precisa ser posto, senão ele nem
existiria. Assim a relação galinha ® ovo parece ser até mais forte que a relação ovo Þ galinha. Mas
isto é irrelevante para a solução do nosso paradoxo.
Pois mesmo que o ovo se quebre antes de poder
2 A noção de
identidade através do tempo é certamente problemática. Leibniz concebe a identidade
através do tempo no seu
super-essencialismo: no conceptus completus de
uma substância estão incluídas todas as propriedades de toda “história” de
um indivíduo (veja C.Brown Leibniz and Strawson,
1990). Outras teorias interessantes sobre identidade através do tempo
oferecem (a exemplo do famoso navio de Teseu) P. Simons
(1987) com a sua distinção entre constante material e constante
formal, bem
como a teoria mereologica de R. Chisholm.
6
se desenvolver para o estado de galinha adulta, ele é
idêntico à galinha potencial. Mesmo admitindose
que a mãe de Aristóteles é uma condição empírica
necessária para a sua existência, ela não é
condição para a sua identidade. Dependência ontológica
(no sentido de Hussserl) é uma relação forte,
mas não mais forte que a da identidade.3 Se a mãe de
Aristóteles tivesse cometido aborto, o adulto
Aristóteles não existiria. Mas mesmo neste caso o feto
Aristóteles já é idêntico a Aristóteles, mesmo
este então não podendo se tornar mestre de Alexandre,
o grande. Nós temos de distinguir a relação de
uma entidade para com as suas condições materiais de
existência da relação lógico-metafísica muito
estrita de uma entidade para consigo mesma. Sem
oxigênio, água e alimentos, Aristóteles certamente
não poderia existir, mas estes não são mesmo assim
condições da sua identidade pessoal. Ninguém
poderia sugerir seriamente que a relação ontológica de
Aristoteles para com os seus alimentos seja
mais ou igualmente forte quanto a relação entre as
suas diferentes fases: feto, criança, adulto.
Voltando ao nosso paradoxo: mesmo que a galinha seja
uma condição material para existência do
ovo, ela não é condição para a identidade entre o feto
da galinha e a galinha adulta. Se o ovo quebra
antes que ele possa se desenvolver para o estado
adulto, o ovo teria existido mesmo assim antes da
galinha.
Nós falamos sobre a “galinha potencial” no caso do ovo
quebrar antes de poder se desenvolver. Ao
fazê-lo nós não recorremos à noção muito problemática
da identidade de entidades meramente
possíveis, como a possível galinha gorda na porta ou a
possível galinha careca na porta (Quine 1948).
O falar sobre entidades possíveis é aqui meramente
explanatório, poderíamos dizer uma façon de
parler, pois
no caso da primeira galinha, é óbvio que ela não era simplesmente possível, mas
atual.
Para fazê-lo claro, tomemos um exemplo. Em um
laboratório, sob controle muito rígido, acontece o
inacreditável: Uma pomba coloca um ovo, e uma galinha
se desenvolve deste ovo. O que diriam os
cientistas neste caso? Que a pomba não era realmente
uma pomba? Isto é por motivos puramente
lógicos (sintáticos) errado. Que a galinha não era
realmente uma galinha? Isto falha por razões
idênticas. Que uma entidade era simultaneamente uma
galinha e uma pomba? Mas com isto não se
resolveria o problema, mas apenas se transferiria o
problema para os antecedentes desta ave: teria de
descobrir qual era a primeira ave do tipo
pomba-e-galinha (e assim não puramente pomba). Assim, a
determinação precisa estar na determinação do ovo. Ele
era desde sempre um ovo de galinha. Pois a
relação do ovo para com a entidade que ela vem a ser
no futuro (identidade) é mais forte do que a sua
relação para com a entidade que a gerou (relação de
procriação). O feto Aristóteles sempre foi
Aristóteles e nunca a sua mãe. Toda galinha já foi
algum dia um ovo: o ovo existiu antes da galinha.
Aliás, eu penso que esta solução corresponde em última
análise à intuição do senso comum. Na
história do patinho feio, a maioria das pessoas
provavelmente pensa que um ovo de cisne foi
escamotedamente introduzido no ninho da galinha, e não
que de uma forma misteriosa de um ovo de
galinha cresceu um cisne. Mas mais importante que a
confirmação do senso comum é o exame do
ponto de vista da ciência natural. Vejamos o que a
biologia poderia dizer neste caso.
4 O enfoque biológico: a teoria da evolução
Galinhas e ovos são contigentes e não existem desde
tempos eternos. Segundo a teoria da evolução
(que eu assumo como verdadeira) as espécies naturais
surgiram num longo processo de mutações
genéticas e de seleção natural. Mesmo sendo crítico
frente a redução de toda a biologia ao modelo
epistemológico da teoria da evolução (tome por exemplo
o vitalismo de Driesch 911, ou a autopoiesis
de Maturana 1985), nenhum biólogo contemporâneo deve
supor seriamente que exista uma teoria
melhor sobre a origem das espécies do que a teoria
fundada por Darwin em sua obra de 1859.
3 A noção da
“força” usado aqui pode ser esclarecido no sentido usado no contexto do debate
entre Russell e Bradley sobre a
internalidade e externalidade das relações. Uma relação
é dita forte, quando a relação de dependência ontológica é mais
interna (mais essencial ou constitutiva) para um
indivíduo.
7
De acordo com esta teoria nós temos de supor que antes
da galinha havia uma espécie de prégalinha.
Esta espécie precisa ter posto ovos que podemos chamar
de ovos de pré-galinha. Nosso
paradoxo persiste aqui: Em tal longo processo houve
uma lenta transição de pré-galinhas para
galinhas, a qual foi constantemente intermediada por
ovos de pré-galinha e ovos de galinhas. A nova
versão do nosso problema é aqui: A partir de qual
momento exatamente uma pré-galinha se torna uma
galinha? Quando houve a primeira galinha ou o primeiro
ovo de galinha nesta longa série?
O modelo biológico traz um novo elemento lógico na
discussão: O paradoxo parece estar
conectado com a imprecisão (vagueness) do conceito galinha
ou do predicado ser uma galinha. Visto
assim, o paradoxo é simplesmente uma variante dos
famosos paradoxos de Sorite. Este tipo de
paradoxo surge sempre quando se usam conceitos vagos,
como “careca” ou “monte”: quantos fios de
cabelo são precisos para não ser um careca? Quantos
grãos de areia formam um monte? No caso da
galinha: Qão parecida com uma galinha precisa ser uma
ave para que ela possa ser considerada uma
galinha? Se “galinha” é realmente vago, a afirmação “a
quase-galinha (99,9% de uma galinha) é uma
galinha” não é decidível definitivamente - então o
paradoxo só é passível de uma solução dentro dos
quadros das diferentes teorias de solução para os
paradoxos de Sorite, mas uma solução unívoca não é
de se esperar.4 Pois para poder se falar na primeira galinha ou no
primeiro ovo significativamente, nós
temos de assumir com Frege algo como o princípio de
precisão de conceitos: para todos objeto x deve
ser claro se x é uma galinha ou não. Enunciados como
“x é uma galinha” tem de ser decididamente
verdadeiros ou falsos, tertium non datur.
O problema dos conceitos vagos só pode ser evitado se
nós introduzirmos limites claros para o
predicado em questão. Apenas definições precisas podem
eliminar os casos limites (borderline cases)
de uma série Sorite de quase-galinhas. Mas que
definição de galinha nós temos à disposição? De fato,
não é realmente importante para os nossos propósitos
estabelecer qual definição nós temos, mas sim
observar como são estabelecidas as definições de
espécies naturais em geral na biologia. A maneira
usual deve ser o constatar de uma estrutura genética
mínima específica para cada espécie natural.
Existem possivelmente várias maneiras de tornar o
conceito galinha preciso. Diferentes cientistas
podem propor diferentes estruturas genéticas como uma
condição mínima para a definição da galinha.
Mas cada definição possível (o que poderíamos chamar,
segundo Kit Fine5, de espaços de
especificação) tem uma condição específica mínima,
digamos a variável gen-G. Para qualquer
especificação n vale: x é uma galinha de acordo
com a definição Dn se e somente se x tem o gen-Gn.
Assim a nova formulação do paradoxo é: Qual entidade
teve por primeiro o gen-G, o ovo ou a
galinha? E a resposta tem de ser novamente: o ovo,
independente de qual estrutura genética se toma
como definitória para a espécie.6
No processo de evolução cada nova espécie (e assim o
primeiro indivíduo de uma espécie) surge
no ato de procriação, no cruzamento e geração de ovos,
e não no desenvolvimento individual do
estado de ovo ou feto para o estado adulto.
Absolutamente independente das definições assumidas
(i.e. da especificação da expressão), quando um
individuo tem um gen-G, então não apenas como
organismo adulto, mas já desde seu estágio de ovo. A
estrutura genética de um indivíduo permanece
fundamentalmente imutável durante toda a sua vida. De
um ovo de pré-galinha (de um ovo de “aindanão-
galinha, ou seja, um ovo sem o gen-G) não pode se
desenvolver uma galinha (um indivíduo
adulto com gen-G). Do outro lado, uma pré-galinha pode
naturalmente por um ovo de galinha: a
última mutação mínima que transforma uma pré-galinha
em uma galinha acontece no ato de geração
4 Sobre a nova
discussão do problema das expressões vagas e as dificuldades das teorias até
hoje apresentadas,
veja: R. Keefe e P. Smith Vagueness: A Reader (1997).
5 O conceito de specification
space foi introduzido por Kit Fine em Vagueness, truth and logic (1975).
Ele apresenta
algumas dificuldades, as quais, no entanto, não são
relevantes neste contexto.
6 A solução aqui
proposta tem como conseqüência necessária, como Barry Smith me advertiu
corretamente em um diálogo, a
tese de que o primeiro ser humano teve como mãe um ser
não humano. Isto é uma tese certamente surpreendente e até
desagradável, mas, penso eu, menos desagradável do que
a idéia de que de um pequeno feto não humano se desenvolveu um
humano adulto.
8
de um ovo. Aplicado ao esquema S2: a última e decisiva
mutação na origem das galinhas ocorre de
acordo com a teoria da evolução em ® e não em Þ.
Claro que nós não podemos excluir a possibilidade de
que mutações genéticas possam ocorrer em
células de indivíduos adultos, mas isto só pode
ocorrer com respeito a células isoladas ou agregados
de células, e são irrelevantes para a decisão sobre o
pertencer de um indivíduo a uma espécie. Se nós
implantarmos o fígado de uma galinha em um pato, este
permanece sendo um pato e não se
transformaria em uma galinha, apesar do grande número
de células de galinha em seu corpo. A única
possibilidade de se rejeitar a hipótese-O seria propor
uma teoria de acordo com a qual o primeiro
individuo com gen-G se encontrou num estágio tão
primitivo da evolução, ainda antes de pré-galinhas
terem ovos como intermediários entre dois indivíduos
adultos. Neste caso não haviam sequer ovos no
tempo em que surgiu a primeira galinha. Tal conceito
extremamente largo de galinha é, no entanto,
muito pouco usual e contradiria a suposição básica de
que galinhas são aves desenvolvidas e que
todas as aves põe ovos.
Mesmo se nós aceitássemos uma reabilitação do
Lamarquismo (e de fato existem hoje
experimentos nesta direção), a mudança do fenótipo de
um indivíduo nunca determinaria a estrutura
genética do mesmo indivíduo, mas apenas do seu
descendente no momento do ato de procriação.
Talvez a mosca usada nestes experimentos possa
realmente dar as informações adquiridas em sua vida
a seus descendentes na forma de uma estrutura
genética, mas elas certamente não determinam uma
troca de espécie dela mesma. Aplicado ao nosso
paradoxo: A jovem pré-galinha de alguns dias não
pode repentinamente, devido as suas próprias
experiências biográficas, obter o gen-G, mas sim, na
melhor das hipóteses (se o neolamarquismo for
correto), dar o gen-G aos seus descendentes: os seus
ovos teriam o gen-G, e seriam, portanto, ovos de
galinha, dos quais as primeiras galinhas se
desenvolveriam. Nós concluímos assim aqui também: o
ovo existiu antes da galinha.
5 Conclusão
A hipótese-O é melhor fundada, tanto do ponto de vista
metafísico-ontológico quanto do ponto de
vista biológico. O desenvolvimento do ovo para a
galinha é um processo imanente de um indivíduo, o
ato de pôr um ovo é, ao contrário, a criação de um
novo indivíduo. Aliás, é evidente que uma resposta
ao paradoxo tem de ser possível. Assim como o barbeiro
da história de Russell, o qual barbeia todos e
somente estes homens da aldeia, que não se barbeiam a
si mesmos, não pode existir (ele mesmo se
barbeia ou não?), a galinha evidentemente não pode se
desenvolver de um ovo que ela mesma pôs.
Assim, um deles precisa ter sido anterior, o ovo ou a
galinha. No fim da recapitulação ontológica da
filogenia somos convencidos: no princípio era o ovo.
9
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