sábado, 15 de junho de 2013

CAPÍTULO II
  MODERNIDADE RELIGIOSA




Este capítulo busca situar o problema desta pesquisa no contexto da discussão sobre as características do campo religioso brasileiro. Primeiramente demonstra-se que, no Brasil,  seguindo a tendência da discussão internacional, a pesquisa sociológica sobre o tema da religião encontra-se hoje  polarizada em torno de duas posições antagônicas: a teoria da “secularização” e a teoria do “retorno do sagrado”. Nosso objetivo é buscar superar esta oposição e abrir caminho para uma investigação que toma  o tema da mística como seu elemento central. Proceder-se-á da seguinte forma. Nos dois primeiros tópicos apresenta-se um retrato do campo religioso[1] brasileiro e de suas principais interpretações analíticas. No terceiro momento, apresenta-se a “teoria da modernidade religiosa” de Hervieu-Léger e explicita-se: 1) em que medida ela representa uma alternativa teórica ao impasse  dos estudos sociológicos sobre a religião no Brasil e, 2) em que medida esta teoria pode nos ajudar a pensar – sociologicamente – o tema da mística.

1.    O CAMPO RELIGIOSO NO BRASIL

Neste tópico vamos nos debruçar sobre duas questões em particular: 1) a composição denominacional das religiões no Brasil e; 2) o comportamento religioso do brasileiro. Ambas as discussões serão importantes para situar, em seguida, as principais interpretações analíticas sobre o campo religioso  brasileiro.




1.1.             Religiões

Os dados mais recentes sobre o campo religioso brasileiro nos foram fornecidos por uma pesquisa do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) realizada no ano de 2000. Conforme o levantamento da pesquisa, este seria o retrato das religiões no Brasil:
                                   
Tab. 01 – Campo religioso brasileiro
Religião
Percentual
Católicos
73.9%
Protestantes
5.0%
Pentecostais
10.6%
Outras religiões
3.2%
Sem religião
7.4%
                   Fonte (Vários autores. Atlas da filiação religiosa, 2003, p. 34).


Em relação a este quadro pode-se perceber que, apesar do declínio da igreja católica, o catolicismo continua a ser a denominação predominante no Brasil, com 74% de adeptos.  Em seguida aparecem os Evangélicos que abarcam o total de 15.6% dos entrevistados. O terceiro segmento, note-se, é formado pelos que se declararam “sem religião” e que perfazem 7.4% do total. As outras religiões representam apenas 3.2% deste universo.

 Para uma análise mais pormenorizada deste quadro, pode-se complementá-lo por pesquisa coordenada por Pierucci e Prandi (1996) e que foi realizada pelo Instituto Data Folha em 1994. Desta forma, teríamos os seguinte números:

Tab.  02 – Denominações religiosas no Brasil
Católicos

Tradicionais

61.4%
Carismáticos
3.8%
CEBs
1.8%
Outros movimentos
7.9%
Total
74.9%
Evangélicos
Históricos
3.4%
Pentecostais
9.9%
Total
13.3%
Kardecistas

3.5%
Afro-brasileiras
Candomblé
0.4%
Umbanda
0.9%
Total
1.3%
Outras

2.0%
Sem religião

4.9%
                           Fonte (Pierucci e Prandi, 1996, p. 216).

Utilizando ambas as fontes, pode-se ter um excelente perfil do que acontece hoje com as diversas denominações religiosas no Brasil.

O catolicismo, ainda que seja a religião predominante, apresenta-se em franco declínio numérico.  Como mostra o quadro, o principal fator que concorre para isto é que somente 13.5% de católicos  assumem pessoalmente a prática regular de sua fé, enquanto a maioria (61.4%) vive o catolicismo de forma tradicional, ou seja, como herança social. É por esta razão que o catolicismo é a grande fonte de “conversões” e de expansão de novas denominações religiosas. Os dados de Prandi e Pierucci mostram também a situação dos principais movimentos que marcam a história da igreja católica no Brasil nos anos 80 e 90. As politizadas Comunidades Eclesiais de Base – CEBs – ligadas à teologia da libertação, hoje em declínio, representam 1.8% do universo total dos entrevistados. Já o movimento da Renovação Carismática Católica– RCC – abarcaria 3.8% dos fiéis. Finalmente, os católicos que pertencem a movimentos tradicionais do catolicismo somam 7.9% dos entrevistados.

O segmento mais dinâmico do campo religioso brasileiro são os chamados evangélicos, que estão divididos em dois grandes grupos: os protestantes históricos e os protestantes pentecostais. No grupo das denominações do protestantismo histórico encontramos, entre outras,  as igrejas Luterana, Batista, Presbiteriana, Metodista, Episcopal e Congregacional. Este grupo têm apresentado pouco crescimento, permanecendo, na prática, estagnados[2]. Diferentemente do que acontece com o mais dinâmico e, recentemente, o mais estudado segmento da vida religiosa no Brasil: os protestantes pentecostais. Como vimos, os pentecostais representariam hoje 9.9% da população religiosa brasileira. O que chama a atenção dos estudiosos é o fato de que a expansão do pentecostalismo se dá especialmente nas décadas de 70 e 80, apesar deste movimento ter surgido no Brasil desde o início do século XX[3].
          
Apesar de pouco destacado, o terceiro grupo religioso no Brasil em termos numéricos é o grupo dos “sem religião”, que perfazem hoje 4.9% da população, número que chega a ser superior aos membros das igrejas do protestantismo histórico (3.4%).

Os kardecistas ou espíritas, que incorporam ao cristianismo o princípio da reencarnação conforme a doutrina de Allan Kardec somam 3.5% de adeptos e são encontrados especialmente entre os segmentos das camadas médias urbanas.

O último grupo de religiões no Brasil são as religiões afro-brasileiras, divididas em dois segmentos fundamentais: o candomblé e a umbanda. O membros do candomblé, cujas raízes encontram-se no Brasil colonial, somam  0.4% da população. Já a Umbanda, que é mais recente (anos 30) e funde princípios  espíritas com idéias do candomblé chega ao percentual de 0.9% de membros declarados[4].

Esta breve apresentação e comentários sobre as denominações que compõem o que chamamos de “campo religioso brasileiro”  revela que, apesar do ainda forte predomínio do catolicismo, o Brasil de hoje apresenta uma maior diversidade religiosa. Mas, é bom que não se esqueça que, em nosso país,  o cristianismo (em suas várias versões) é a religião predominante, excetuando-se o segmento afro-brasileiro e as outras religiões que, juntas, somam apenas 3.3% ou, no máximo 7.2% de indivíduos, se incluirmos na soma  o grupo de pessoas sem religião[5]. Em resumo, podemos afirmar que, do ponto de vista institucional, a grande característica do campo religioso brasileiro é o  crescimento e a diversificação do “pluralismo religioso”[6].

1.2.     Religiosidade

Do ponto de vista teórico, são dois os tipos de produção desenvolvidos pelas ciências sociais da religião no Brasil no sentido de analisar a comportamento religioso dos brasileiros. Em uma linha mais quantitativo-estatística, existem alguns estudos sobre as representações religiosas de determinados segmentos da sociedade  ou ainda de fiéis de determinadas instituições religiosas (católicos e evangélicos). Por outro lado, adotando uma linha mais qualitativa, vários trabalhos no Brasil procuram identificar os elementos constituintes e comuns das representações e práticas religiosas dos brasileiros.

Na primeira destas perspectivas, trabalhos recentes (Consorte, 1994; Novaes, 1994 e 2001; Camurça, 2001a; Steil, Alves e Herrera, 2001; Cardoso, Perez e Oliveira, 2001 e; Oro, 2002) têm se dedicado a pesquisar o comportamento religioso de jovens universitários, captando importantes tendências no formato das crenças e práticas deste segmento social. Mas, apesar de seu valor, o alcance destas pesquisas é limitado, na medida em que parte de um segmento bastante restrito da sociedade brasileira (jovens universitários, especialmente os estudantes de ciências sociais), dificultando a generalização de suas conclusões para abarcar o conjunto de crenças, representações e práticas dos brasileiros.

Entre as pesquisas que procuram abarcar um público mais amplo, pode-se citar como exemplos o  levantamento feito pelo ISER (Instituto Superior de Estudos da Religião), em 1994, a respeito dos evangélicos;   e o levantamento do CERIS (Centro de Estatística Religiosa e Investigações Sociais) sobre os católicos, realizado no ano de 1999.

A pesquisa realizada pelo ISER (Fernandes, 1998) no ano de 1994, na região metropolitana do Rio de Janeiro, visitou 40.172 domicílios e entrevistou 1.332 pessoas. Quatro variáveis foram pesquisadas: 1) perfil social dos evangélicos, 2) crenças e práticas religiosas, 3) relações de gênero, estrutura familiar e práticas reprodutivas e 4) participação cívica e comportamento político. Mas, embora a publicação da pesquisa termine com comentários de autores consagrados da ciência social das religiões no Brasil (Pierre Sanchis, Guilherme Velho, Cecília Mariz, Clara Mafra e Leandro Carneiro), não se chega a uma conclusão única e definitiva. Na visão de Sanchis (1998, p.150-168), por exemplo,  o sucesso dos evangélicos (especialmente da Igreja Universal do Reino de Deus), está em combinar aspectos da religiosidade moderna com seus aspectos pré e pós-modernos.

Já a  pesquisa do CERIS (Souza e Fernandes, 2002), entrevistou 5.218 pessoas (maiores de 18 anos) nas seis principais metrópoles brasileiras (Recife, Salvador, Belo Horizonte, Rio de Janeiro, São Paulo e Porto Alegre), visando identificar as principais tendências do catolicismo no Brasil. Organizando as questões com base nas respostas de católicos ou não católicos, a pesquisa preocupou-se em verificar quatro variáveis fundamentais: 1) crenças e motivações religiosas, 2) prática religiosa e participação social, 3) meios de comunicação e religião e 4) orientações ético-religiosas. Apreciando de forma conjunta as indicações trazidas por cada uma das quatro variáveis pesquisadas, a principal conclusão da pesquisa, segundo as “perspectivas pastorais” elaboradas por Alberto Antoniazzi (2002, p.252), é a “fragmentação do universo religioso brasileiro ou, mais exatamente, o peso crescente da decisão subjetiva na escolha e na construção da religião de cada pessoa” .

Embora pesquisas de cunho quantitativo possam indicar importantes tendências no comportamento religioso dos indivíduos, ela pecam pelo seu excessivo grau de generalidade. Por isso, elas necessitam ser complementadas por estudos mais específicos, especialmente de caráter qualitativo. Visando contemplar esta lacuna, pode-se localizar também um conjunto de trabalhos que, através da reflexão teórica (mais do que empírico-estatística), busca apontar para alguns traços que seriam comuns no comportamento religioso no Brasil.

André Droogers (1987), por exemplo,  procura identificar o que ele chama de “religiosidade mínima brasileira” (RMB). Este conceito refere-se a  uma religiosidade presente nos meios seculares e que é vinculada pelos meios de comunicação e pela linguagem cotidiana. Ela está presente na fala de políticos, esportistas, na televisão, no rádio, na propaganda, na música, em ditados e até em pára-choques de caminhão. Seus temas principais são Deus, Jesus, a fé, a oração e um relação bem humorada com a religião.  Para este autor, esta religiosidade mínima possui uma função ideológica: “Assim, a RMB contribui para a formação de uma identidade cultural brasileira e para a supressão de tensões e conflitos, tanto religiosos como seculares, que minam a unidade” (1987, p.86).

Ari Oro (1997), por sua vez, desenvolve a tese de que a modernidade religiosa brasileira caracteriza-se, hoje, por três tendências fundamentais: a) privatização da religião; b) o trânsito religioso e; c) ampliação e deslocamento do sagrado. A privatização do sagrado “consiste no fato de que cada indivíduo tende a moldar a sua própria religião apropriando-se de fragmentos e de elementos provenientes de diversos e diferentes sistemas religiosos” (1997, p. 42). O trânsito religioso é explicado por Oro da seguinte forma: “outro modo de ser religioso atual consiste no trânsito entre diferentes espaços sagrados e/ou sistemas de crenças, ou seja, na prática, a freqüência simultânea a distintas religiões” (1997, p.43). Oro ainda explica que esta forma de comportamento tem profundas raízes na sociedade brasileira, especialmente por causa do que se convencionou chamar de sincretismo.  Finalmente, a terceira tendência constatada pelo pesquisador refere-se a indefinição das fronteiras entre religião e outras esferas ou práticas da vida social, como a ciência, a arte, a medicina, a filosofia, a ecologia, a psicologia, etc. Enfim, trata-se da sacralização de esferas e instâncias não necessariamente religiosas[7].

Lísias Negrão (1997) adota como hipótese a existência de uma cultura religiosa brasileira popular que incluiria um mínimo denominador comum. Esta “religiosidade mínima brasileira” seria composta de cinco traços e características fundamentais: 1) a concepção de que todas as religiões são boas porque conduzem a Deus, 2) predomínio da concepção de divindade e da moral cristã, 3) a relação privilegiada do crente com mediadores como os santos, orixás, guias, caboclos e outros, 4)  crença nos espíritos dos mortos e em sua capacidade de comunicação com os homens e,  5) crença de que a religião é essencialmente uma forma de proteção contra os males do mundo. É justamente em decorrência dos elementos acima apontados que este autor vê a possibilidade da vivência de experiências religiosas plurais, tão comuns no indivíduo religioso brasileiro.

 Pierre Sanchis (2001) é mais cauteloso e, em vez de “religiosidade mínima”, prefere indicar as diversas “matrizes” comuns do mundo religioso brasileiro:

Não pretendo falar do conteúdo da “religião” dos brasileiros, mas perguntar-se, em seu conjunto, suas manifestações não revelariam – nas modalidades do jeito de se constituírem – analogias, oposições e complementaridades ativadas preferencialmente à margem das instituições que acabariam fazendo desse conjunto um “campo” religioso com componentes mutuamente referidos, e por isso um campo religioso reconhecível, porque determinado e particular.(Sanchis, 2001, p.19).

A primeira destas modalidades seria a existência generalizada de uma matriz comum à religiosidade brasileira: o cristianismo. O segundo elemento diz respeito a preponderância de uma matriz ainda católica no Brasil. Isto se deve não só ao caráter intrinsecamente sincrético desta tradição religiosa, mas também tendo em vista o lugar central que o mito e o símbolo exercem na liturgia católica.  Uma terceira modalidade da religiosidade brasileira teria sua origem na matriz indígena (tupi-guarani) e é caracterizada por Sanchis como sendo espiritualista. Trata-se da crença ampla e generalizada na existência dos espíritos (seja como forem denominados). Em suma, o indivíduo religioso brasileiro alimenta uma identidade plural e múltipla que “não corresponde necessariamente a experiências religiosas individuais, segmentárias mas não isolantes” (2001, p.27). Existe, portanto, na história brasileira a persistência de um habitus flexibilizador, que constrói os sincretimos sem suprimir as diferenças.

Apesar da variedade de perspectivas que podem ser adotadas (quantitativa ou qualitativa/teórica) e das múltiplas conclusões possíveis, pode-se notar que uma das características mais destacadas pelo conjunto de estudos aqui apresentados foi o fenômeno do “subjetivismo religioso”. Em outros termos, tanto os estudos de cunho quantitativo quanto qualitativo vêm mostrando que a religiosidade brasileira tem como uma de suas marcas fundamentais o individualismo religioso, situação na qual é a própria pessoa que monta o seu sistema de crenças de forma independente da filiação religiosa institucional que, por isso mesmo, tende a ser também múltipla e plural (trânsito religioso).

2.    Interpretações teóricas

A análise precedente do campo religioso no Brasil nos mostrou que, do ponto de vista das religiões institucionalizadas, o Brasil vivencia um processo de acentuação de seu pluralismo religioso.  Já do ponto de vista do comportamento efetivo dos agentes religiosos, o traço característico da religiosidade brasileira é o subjetivismo religioso. Todavia, “descrever” não significa ainda “explicar”. E, naturalmente, a ciência social no Brasil não se furtou à tarefa de buscar as razões, motivações ou fatores que poderiam explicar as tendências observáveis no campo religioso brasileiro e na própria sociedade nacional. Neste tópico, apresentamos uma visão panorâmica destes estudos e buscamos mostrar como o paradigma da secularização tem sido o principal instrumento teórico na interpretação da dinâmica da vida religiosa no Brasil. Comecemos por caracterizar, de forma preliminar, o que entendemos por “paradigma da secularização”; para verificar, após, de que forma este  debate tem se desenvolvido na ciência social brasileira.

2.1.  Paradigma da secularização

O fato de utilizarmos a noção de “paradigma” para nos referirmos a problemática da secularização já indica que não estamos nos referindo apenas a um autor, mas a um conjunto de autores e teorias que partilham de pressupostos comuns e de uma determinada tradição de pesquisa. O termo “secularização” adentra no vocabulário das ciências sociais com a obra de Max Weber. Mas, como paradigma predominante no campo dos estudos sócio-religiosos, ele emerge apenas durante os anos 60. Neste período, os teóricos da religião vão retomar a leitura de Max Weber destacando especialmente o seu conceito de “secularização” como a chave interpretativa para a compreensão do declínio da religião no mundo moderno. Trata-se, antes de tudo, de uma determinada leitura de Weber realizada em função de uma demanda teórica específica, qual seja, entender o lugar da religião na sociedade moderna.  De qualquer forma, isto nos obriga a começar a discussão sobre o paradigma da secularização com uma reflexão sobre o sentido global da obra weberiana.

2.1.1.  Max Weber

Por “sentido global”, estamos nos referindo aqui ao objetivo ou a finalidade a que se propunham as análises comparativas que Weber efetuou entre as religiões ocidentais e as religiões orientais. Trata-se, portanto, de apreender o próprio cerne da obra weberiana. Em relação a este problema, duas posições se destacam. Para um primeiro grupo de autores[8], a preocupação básica de Weber é elucidar  a gênese do capitalismo ocidental moderno. Partindo da constatação de que existe uma “afinidade eletiva” entre protestantismo e capitalismo no Ocidente; Weber teria efetuado seus estudos sobre as religiões Orientais apenas para demonstrar que a ausência deste tipo de religiosidade teria impedido o desenvolvimento endógeno do capitalismo moderno nas sociedades não-ocidentais.  Já para um segundo grupo de autores, a problemática da obra weberiana é muito mais ampla do que meramente a gênese do capitalismo ocidental moderno. Nesta versão, a obra de Weber procura realizar um vasto estudo sobre o racionalismo ocidental. Em outros termos, o tema central de sua obra é o processo de racionalização social que somente no Ocidente teria chegado aos seus limites finais, desvencilhando-se totalmente da magia.  Gênese do capitalismo ou processo de racionalização? Qual é a chave explicativa do conjunto da obra weberiana?

Recentemente, o interesse pela obra de Weber tem aumentado significativamente, predominando uma nova versão da teoria weberiana que tem no conceito de racionalização sua categoria central. Chamada normalmente de evolucionista ou neo-evolucionista esta interpretação tem como seus principais proponentes os estudos de Friedrich Tenbruch (1980) e Wolfgang Schluchter (1985). A perspetiva destes autores também é retomada por Habermas ao empreender sua incorporação de Weber na sua “teoria da ação comunicativa” (1987). Nesta obra, o autor afirma explicitamente que a teoria da racionalização é o fio condutor do projeto teórico weberiano:

Sin embargo, utilizando como hilo conductor sua teoria de la racionalización, puede reconstruir-se su proyecto en conjunto; esta perspectiva interpretativa, que ya dominó en las discusiones de caráter predominantemente filosófico de los anõs  veinte, pero que después quedó desplazada por una perspectiva estrictamente sociológica centrada en torno a Economia y Sociedad, ha vulto a imponerse em los estudios recientes sobre Weber (Habermas, 1987, p. 198).

Em sua interpretação, Habermas distingue em Weber duas jornadas de racionalização.  Como explica o autor, enquanto na racionalização cultural  Weber “se interesa por la  racionalización de las imágenes del mundo”; na racionalização social ele “se interessa por la materialización institucional de las estructuras de consciência modernas, que se formaram en el processo de racionalización religiosa, es decir, por la transformación de la racionalización cultural em racionalización social” (1987, p. 227).

De fato, a maioria dos autores brasileiros recentes que tem buscado utilizar-se das categorias weberianas para a compreensão da realidade social brasileira têm partido da concepção que chamamos de (neo) evolucionista, que parte das interpretações de Tenbruck, Schluchter e Habermas. Entre os teóricos que mais têm se destacado neste esforço podemos mencionar Leonardo Avritzer (1996), Jessé de Souza (1997 e 2000) e, especialmente, Antonio Flávio Pierucci.

Em artigo em que  retoma o sentido do termo secularização na obra de Max Weber, Pierucci (1998, p.43-73) demonstra que, de forma geral, os conceitos de racionalização, desencantamento do mundo e secularização costumam ser utilizados por muitos como sinônimos. Mas, insiste o escritor, o conteúdo destes conceitos difere entre si.  Acompanhando sua explicação podemos ler que “para Weber, o desencantamento do mundo ocorre justamente em sociedades profundamente religiosas, isto é, é um processo essencialmente religioso, porquanto são as religiões éticas que operam a eliminação da magia como meio de salvação” (1998, p.50). Quanto ao outro termo, explica Pierucci: “secularização, por outro lado, implica  abandono, redução, subtração do status religioso; significa sortie de la religion; é defecção, uma perda para a religião e emancipação em relação a ela” (1998, p.50). O autor comenta ainda que “neste sentido, ela [a secularização] é resultado, conseqüência, de certa maneira um ponto de chegada, uma conclusão lógica do processo histórico-religioso de desencantamento do mundo” (1998, p. 51). O terceiro termo em questão é explicado por Pierucci desta forma: “Em Weber, o processo de racionalização é mais amplo e mais abrangente que o desencantamento do mundo e, neste sentido, o abarca; o desencantamento do mundo, por sua vez, tem a duração histórica mais longa, mais extensa que a secularização e, neste sentido, a compreende” (1998, p.51).

Para elucidar um pouco mais este tema, vamos aprofundar cada um destes conceitos, recorrendo aos escritos do próprio Weber.  Comecemos pelo conceito de “racionalização”. Como já destacamos, este conceito é a categoria central de toda obra weberiana, como ele mesmo deixa claro em sua “Introdução” aos Ensaios de Sociologia da Religião”[9] na qual o autor descreve as instituições racionalizadas da sociedade moderna: a ciência, a arte, a arquitetura, as universidades, o Estado e, principalmente, o capitalismo e na qual ele conclui sua reflexão dizendo:

Porque em todos os casos citados, trata-se do racionalismo específico e peculiar da cultura ocidental (...). Racionalizações têm existido em todas as culturas, nos mais diversos setores e dos tipos mais diferentes. Para caracterizar sua diferença do ponto de vista da história da cultura, deve-se ver primeiro em que esfera e direção elas ocorreram. Por isso, surge novamente o problema de reconhecer a peculiaridade específica do racionalismo ocidental e, dentro deste moderno racionalismo ocidental, o de esclarecer a sua origem (Weber, 1996, p.11).

Portanto, é justamente no texto que abre os seus  “Ensaios de Sociologia da Religião” que este autor deixa muito claro qual é a intenção global de sua obra e o objetivo fundamental de seus estudos de sociologia da religião. Trata-se de investigar 1) a peculiaridade específica do racionalismo ocidental e, ao mesmo tempo 2) esclarecer a sua origem.

A origem do racionalismo ocidental, como sabemos, envolve um longo processo de “desencantamento do mundo” (Entzauberung der Welt), segundo termo que vamos comentar agora.  Pierruci[10] (1998, p.50) nos lembra que Weber foi buscar este termo em Schiller, no qual aparecem os conceitos de des-divinização e ainda des-endeusamento. Sabemos que o desencantamento do mundo é um processo que ocorre no interior das próprias religiões e que seu principal traço é eliminação da magia como meio salvação, como Weber deixa claro nesta passagem em que ele discute o caráter geral das religiões asiáticas:

Para apreciar o nível de racionalização que uma religião apresenta podemos usar dois critérios básicos, que se inter-relacionam de várias maneiras. O primeiro é o grau em que uma religião despojou-se da magia; o outro é o  grau de coerência sistemática que imprime à relação entre Deus e o mundo e, em consonância com isso, à sua própria relação ética com o mundo (Weber, p.1991, p.151).

Finalmente, o traço característico da sociedade moderna, ou seja, do racionalismo ocidental, é a “secularização” da esfera política. Como já destacou Pierucci, o termo não é usado por Weber de forma abundante. Curiosamente, ele aparece oito vezes no capítulo de Economia e Sociedade dedicado a sociologia do direito, outras duas vezes no mesmo texto, três vezes na Ética protestante e duas vezes no texto as Seitas Protestantes e o Espírito do Capitalismo. De acordo com a interpretação do sociólogo da USP (Universidade de São Paulo), a secularização refere-se essencialmente a esfera jurídico-política e implica a perda de influência da religião na esfera normativa do Estado. Ou seja, no mundo moderno, as organizações políticas e sociais não retiram mais sua fonte de legitimidade da esfera religiosa. Este é o conteúdo essencial do processo de secularização.

Como podemos concluir, o traço principal da sociedade moderna, para Weber, é o predomínio do racionalismo. Esta era a grande preocupação intelectual do autor alemão, como podemos perceber na conferência que ele pronunciou no ano de 1917 em Munique que recebeu o nome de “A ciência como vocação”. Neste texto, este pensador procura refletir sobre as conseqüências desta fato para a vida do homem.  Partindo da análise do conteúdo e do significado da ciência, ele conclui que “o progresso científico é um fragmento, o mais importante indubitavelmente, do processo de intelectualização a que estamos submetidos desde milênios” (1967, p.30).  Mas, o que significa, ao final, este processo de “racionalização/intelectualização”? Conforme ele mesmo explica:

O destino do nosso tempo, que se caracteriza pela racionalização, pela intelectualização e, sobretudo, pelo “desencantamento do mundo” levou os homens a banirem da vida pública os valores supremos e mais sublimes (...). A quem não é capaz  de suportar virilmente esse destino de nosso época, só cabe dar o conselho seguinte: volta em silêncio, sem dar a teu gesto a publicidade habitual dos renegados, com simplicidade e recolhimento, aos braços abertos e cheios de misericórdia das velhas Igrejas. Elas não tornarão penoso o teu retorno. De uma ou de outra maneira, quem retorna será inevitavelmente compelido a fazer o sacrifício do intelecto (Weber, 1967, p.30).

2.1.2. Características

Se o conceito de secularização nasceu com Max Weber, será somente nos anos 60 que os estudiosos da religião vão adotar esta idéia como referência fundamental (paradigma) para entender o lugar da religião na sociedade moderna. De acordo com Olivier Tschannen, o paradigma da secularização implica em três dimensões:

Avec la différenciation, la vie sociale se sépare em deux sphéres distinctes: religieus et non religieuse. Avec la rationalisation, la sphére non religieuse née de ce processus de différenciation se met à fonctionner selon des critéres rationnels, non religieux. Avec la mondanisation, la sphére religiuse née du processus de différenciation s’éloigne de plus en plus de ses intérêts propres pour se tourner vers des intérêts typiques de la sphére non religieuse. (Tschannen, 1992, p.61-62).

A diferenciação funcional, cujos enunciados clássicos nos foram legados por Spencer, Durkheim e Parsons, significa o processo pelo qual diferentes esferas institucionais com suas diferentes funções, nascem no seio da sociedade.  Este processo implica ainda em diversos correlatos. O primeiro é a autonomização da sociedade diante da religião. Isto significa que a esfera religiosa perde o poder de controle sobre o restante da esfera secular. O segundo correlato é a privatização,  e que tem a ver com dois processos. Em primeiro lugar, temos a retirada da religião da esfera pública para a esfera privada. Em paralelo, a religião se torna cada vez mais subjetiva e cada indivíduo constrói, tendencialmente, seu próprio cosmos religioso. A generalização, terceiro correlato da diferenciação, significa que símbolos da esfera religiosa são destituídos de significado religioso e passam a circular em outras áreas da vida social. Cada um destes correlatos da diferenciação, explica Tschannen, podem ser denominados ainda como formas de recomposição da esfera religiosa na sociedade moderna. Os outros dois correlatos finais são a pluralização (emergência de diferentes visões do mundo religiosas e não religiosas) e ainda o declínio da prática e da afiliação religiosa. 

Quanto a segunda dimensão do paradigma da secularização – a racionalização – ela pode ser definida como “um processo bastante geral através do qual certos domínios da vida social, até então organizados em bases religiosas, passam a funcionar segundo critérios de racionalidade instrumental” (1992, p.67). Entre os chamados correlatos desta dimensão temos a cientifização da visão de mundo dos indivíduos e ainda a sociologização, que significa a idéia de que a sociedade não é mais guiada pela tradição ou pelo destino e sim pela própria ciência. Os outros dois elementos correlatos são alvo de polêmicas e por isso são chamados por Tschannen de “flutuantes”. Trata-se do processo de declínio da visão religiosa do mundo e ainda da própria incredulidade (perda de crenças religiosas).

O terceiro elemento fundamental da secularização – a mundanização –significa que a sociedade desloca suas preocupações da esfera sobrenatural para os interesses mundanos. Do ponto de vista cultural, temos a substituição de uma ética religiosa por uma ética mundana, fundada em elementos racionais e seculares.

É a partir destas três dimensões que podemos localizar os principais autores que, a partir dos anos 60, podem ser listados dentro do paradigma da secularização e que inclui, entre seus nomes mais importantes, autores célebres Thomas Luckhmann, Peter Berger, Bryan Wilson, David Martin, Richard Fenn, Karel Dobbelaere, Talcott Parsons, Robert Bellah, Andrew Greeley, Phlipo Hammond e Jeffrey Haddens, Rodney Stark e William Bainbridge (teoria dos novos movimentos religiosos) e outros mais.

A análise efetuada por Olivier Tschannen nos ajuda a entender dois elementos centrais do debate em torno da secularização. Em primeiro lugar, ele é cuidadoso em sua análise histórica, mostrando que a teoria da secularização não pode ser atribuída a Max Weber com a dimensão que ela adquiriu nos atuais debates da sociologia da religião. E, em segundo lugar, longe de se fixar em apenas um aspecto isolado deste processo, as reflexões deste autor nos permitem entender a secularização como um processo multidimensional e complexo no qual vários elementos interagem entre si

2.2. O debate brasileiro: volta do sagrado x secularização

Neste tópico apresentamos uma visão panorâmica das principais temáticas e vertentes de estudo das ciências sociais da religião no Brasil.  Retomando alguns balanços bibliográficos, desejamos demonstrar de que forma estes estudos têm se posicionado em torno do paradigma da secularização, particularmente das idéias de Max Weber[11]. Dois trabalhos irão nos guiar neste caminho. Trata-se dos balanços bibliográficos realizados por  Paula Monteiro e Antonio Flávio Pierucci. [12]

Privilegiando a literatura especializada produzida nos anos 80 e 90, Paula Monteiro (1999) apresenta como chave de leitura de seu texto a seguinte hipótese: “apesar da diversidade religiosa brasileira, a literatura privilegiou basicamente o estudo do catolicismo e das grandes religiões afro-brasileiras. Apenas nesta última década o protestantismo ganha legitimidade acadêmica” (1999, p. 328).

Do ponto de vista analítico, Monteiro reconhece ainda que as duas abordagens disciplinares predominantes no estudo das religiões são a sociologia e a antropologia. No âmbito da sociologia, as teorias marxistas têm privilegiado o estudo do catolicismo e de suas relações com o Estado e as teorias weberianas o estudo do protestantismo (e do neo/pentecostalismo). Já no âmbito da antropologia, o tema fundamental são as religiões afro-brasileiras, especialmente sob a influência de Durkheim e de Roger Bastide.  Portanto, é em torno destes três eixos analíticos que a autora organiza sua apreciação dos estudos sociológicos da religião no Brasil. Os principais pontos da análise de Paula Monteiro podem ser resumidos no quadro que segue:

QUADRO 01 – Paula Monteiro: sociologia da religião no Brasil

Enfoque disciplinar
Teorias de análise
Temas de Pesquisa
Enfoque Político
Sociologia
Marx
Catolicismo
Estado
Weber/Camargo
Protestantismo
Secularização
Antropologia
Durkheim
Roger Bastide
Umbanda
Candomblé
Nação


A segunda  grande avaliação sobre a literatura brasileira de sociologia religiosa foi produzida por Antônio Flávio Pierucci (1999), abordando a produção posterior a 1970. Intitulado “sociologia da religião – uma área impuramente acadêmica”, o autor sustenta como tese básica a seguinte afirmação: “as ciências sociais da religião no Brasil nunca foram, nem jamais chegaram a ser, uma área puramente acadêmica” (1999, p. 245). De acordo com a tese de Pierucci, isto se deve ao fato de que a pesquisa social sobre a religião no Brasil é realizada tanto por acadêmicos quanto por religiosos. Assim, os estudos sócio-antropológicos  sobre religião no Brasil seriam constituídos de três grupos fundamentais:

a)    religiosos praticantes, que praticam ciência social de alto nível;
b)    religiosos praticantes, que realizam o estudo da religião de forma acrítica e, muitas vezes, com intenções apologéticas;
c)    pesquisadores puramente acadêmicos, que buscam entender cientificamente a religião.

Ao final de seu texto, Pierucci insiste nos riscos de “jogo duplo” praticado por diversos pesquisadores sociais da religião no Brasil, chamando a atenção para dois fenômenos: 1) muitos dos pesquisadores da religião hoje no Brasil professam ou praticam crenças religiosas; 2) parte significativa do que se produz em sociologia da religião no Brasil, desde os anos 70, faz o “elogio da religião” e aplaude com incontida euforia o “retorno do sagrado”[13]. Como conclusão final, arremata, “ a sociologia da religião só é possível porque tem na crítica moderna da religião sua condição pós-tradicional de possibilidade enquanto ciência moderna, enquanto ciência científica” (1999, p. 278).[14]

Além da forte influência weberiana, o que estes balanços de bibliografia apontam com clareza é que os estudos sobre religião realizados no Brasil se repartem em duas posturas teóricas diferenciadas: de um lado temos os defensores da “volta do sagrado” e de outros os defensores  da “secularização”.

A teoria da “retorno do sagrado”  parte de duas premissas fundamentais, que podem ser apresentadas em forma de teses:

a)    Tese 01: o campo religioso brasileiro destaca-se pela sua diversificação e pela visibilidade do fenômeno religioso na sociedade,
b) Tese 02:  este processo demonstra que os pressupostos do paradigma da secularização inspirados em Max Weber (ou outros autores) estão equivocados.

Vejamos alguns exemplos relevantes desta postura teórica, começando pelo texto seminal de Rubem Alves (1978), aliás, intitulado justamente de “A volta do sagrado”.  No balanço que faz da sociologia da religião no Brasil, este autor constata que esta área de estudos sempre ocupou uma posição marginal nos estudos da ciência social brasileira, ao contrário da centralidade que possui nos clássicos da sociologia (Durkheim, Weber e Marx).  Rubem Alves vai então em busca dos fatores sociais e ideológicos deste sub-desenvolvimento temático. O principal elemento que explicaria a marginalidade dos estudos da religião no Brasil seria de caráter ideológico. Trata-se do fato de que a inteligência brasileira está distante das preocupações populares, pois pertence às elites econômicas e políticas. Para esta inteligência, a religiosidade popular e todo o conjunto da cultura popular era algo que devia ser superado. Mas, para Rubem Alves, acontecia então um processo de mudança. O crescimento dos estudos dedicados à religião demonstrava que estava acontecendo uma transformação ideológica profunda, que “implica uma crítica ao ideal de modernização e secularização e na descoberta da contribuição efetiva que os oprimidos (...) podem e devem trazer à política” (1978, p.118).

Outro autor que sustenta tese semelhante é Lísias Negrão (1997). Diz ele que a sociologia brasileira incorporou de forma acrítica conceitos e interpretações moldadas com base em outras realidades sociais. Entre estas impropriedades intelectuais, o autor menciona o uso do conceito de “campo religioso” de Pierre Bourdieu, a idéia de pluralismo mercadológico de Peter Berger, a idéia de privatização do sagrado e, especialmente, o conceito weberiano de “desencantamento do mundo”. Segundo Negrão, “além de boa parte dos sociólogos interpretarem-no, ao meu ver equivocadamente, apenas como o avanço da racionalidade científica no mundo moderno, parece-me haver outra inadequação histórica em sua aplicação à religiosidade brasileira. Esquecem-se eles de que os conceitos weberianos, embora ideais, são historicamente construídos” (1997, p.67).  A partir destas premissas, sustenta-se então que o processo de industrialização e urbanização teria conduzido a sociedade brasileira ao processo de secularização, embora atualmente estejamos assistindo a uma “vingança de Deus”. Ora, de acordo com a avaliação do pesquisador, a sociedade brasileira não foi reencantada pelos simples fato de nunca ter estado desencantada. Para ele, “a maior parte da população brasileira viveu a modernização da sociedade sem secularizar sua visão de mundo “ (1997, p.67).

Já para José Bittencourt Filho (2002), que realiza suas análises com base nas  teorias da pós-modernidade,  seria mais útil falar em “pós-secularização”. Na sua visão, a hipótese da secularização deve ser revista, embora não seja apropriado falar em retorno do sagrado. Retomando as idéias de Guizzardi e Stella, fala-se então em “pós-secularização”.  Estes autores, segundo Bittencourt, “ concluem que a secularização impôs-se efetivamente, mas vem sendo suplantada por uma reestruturação interna das culturas religiosas tradicionais, que passaram a privilegiar a solução de problemas individuais e coletivos imediatos” (2002, p.84).  Neste quadro interpretativo, este estudioso considera tanto a hipótese da secularização pura e simples  quanto a hipótese do retorno do sagrado como equívocos.

Qual seria então a tese correta para entender os processos religiosos contemporâneos? Segundo Bittencour Filho, a transição da modernidade para a pós-modernidade ensejou um processo de adaptação e não de desaparecimento das religiões. A teoria da secularização teria acertado em identificar a crise das grandes instituições religiosas, mas teria errado ao prognosticar seu desaparecimento e sua substituição por visões humanistas. No quadro da pós-modernidade estaríamos vivenciando então uma pós-secularização, entendida como um tipo de religiosidade voltada para a satisfação das demandas imediatas dos indivíduos, sejam elas de caráter material ou mesmo espiritual: “em face de tudo isso só restou a alternativa pós-moderna e pós-cristã, isto é, apostar no mosaico de problemas que povoam a existência de nossos coetâneos, para quem a solução de tais problemas reside na manipulação pura e simples das forças divinas e/ou sobrenaturais, segundo fórmulas altamente ecléticas, para não dizer sincréticas”  (2002, p. 90).

Todavia, a tese do “retorno do sagrado” é fortemente contestada por autores que partem de uma análise cuidadosa das obras de Max Weber  para mostrar que a pluralidade e dinamicidade do campo religioso brasileiro não são sinais de “retorno do sagrado”, mas justamente o contrário, ou seja, indícios da secularização.  Esta abordagem também poderia ser sintetizada na forma de duas teses que são:

a)    Tese 01: as diversas religiões no Brasil (em maior ou menor grau), vem passando por um processo de recuperação ou acentuação de seus aspectos mágicos (tese da re-magização);
b)    Tese 02: este processo não representa uma “volta do sagrado” mas, pelo contrário, revela que o Brasil vem acentuando o processo de secularização  (tese da secularização).

A tese do “retorno da magia” pode ser exemplificada nas formulações de Reginaldo Prandi (1996b) Este autor não nega a secularização operada pela modernidade, embora constate o fato que as suas promessas não foram totalmente cumpridas. Todavia, assevera ele, “o desencantamento significa o refluxo da magia, com o que a própria religião estava bastante de acordo, mas hoje, o que as novas propostas religiosas fazem e professam significa voltar atrás, recuperando a magia com muito vigor “ (1996b, p. 83).  Como explicar, então, o paradoxo da re-encantamento das religiões em um mundo secularizado? De acordo com a explicação de Prandi, para entender esta aparente contradição é preciso levar em consideração o projeto de construção da modernidade no Brasil que nos legou uma sociedade pós-ética (a das classes privilegiadas,  onde reina a lógica do vale tudo) e a sociedade pré-ética (das classes populares, onde reina a lógica do salve-se quem puder).

É neste contexto social que Prandi vai situando os diversos grupos religiosos brasileiros. Em primeiro lugar estaria o declínio do  catolicismo tradicional, dado que este “foi se transformando numa religião cada vez menos importante como fonte de valor e de norma, sem que as interpretações não religiosas tenham ocupado este vazio, na medida em que as instituições laicas não foram capazes, ou não puderam, ou foram impedidas de fornecer códigos de referência” (1996b, p. 84).  Já a proposta de renovação do catolicismo a partir das CEBs com sua proposta de transformação social e engajamento no mundo a partir da religiosidade, esbarrou no predomínio do individualismo e na demanda dirigida a religião por sentido e por solução para os problemas privados e não para os problemas públicos. Dado este cenário, crescem o pentecostalismo, as religiões afro-brasileiras e a proposta de renovação do catolicismo a partir da RCC.

Em suma, o argumento de Prandi  reside na tese de que, apesar da modernização e secularização das instituições sociais brasileiras, as desigualdades sociais fizeram com que as religiões que revalorizam a magia (como o pentecostalismo, as religiões afro-brasileiras e o catolicismo carismático) tivessem um novo incremento. Em outros termos, o re-encantamento da religião no mundo deve-se as falhas do próprio processo de modernização. Como tal, não o contradiz!

Agora, vejamos a tese da secularização, defendida por Antonio Flávio Pierucci (1997b)  Em seus textos, este autor se pronuncia sobre a abundante literatura nacional e internacional que proclama a plenos pulmões a revanche de Deus ou a volta do sagrado. Segundo estas análises, as teorias da secularização e do desencantamento de corte weberiano estariam superadas.  De forma geral, tais estudos tomam o crescimento e diversidade de novos movimentos religiosos como suposta prova do declínio da idéia de secularização e principalmente do vigor da religião. De fato, constata Pierucci, a religião não desapareceu ou foi eliminada na modernidade, mas não se trata disto. A secularização não significa seu desaparecimento, mas sim o seu declínio como o elemento articulador da vida social e cultural. Na modernidade,  a religião é eliminada do espaço público e se confina apenas no espaço pessoal e privado. Este seria o significado da secularização. De acordo com Pierucci, a secularização, longe de ser negada pelo crescimento e diversidade das religiões contemporâneas, torna-se justamente a causa explicativa desta mudança no campo religioso[15].

O que esta rápida resenha das principais posições teóricas da sociologia da religião no Brasil deixa claro é que, em geral,  elas estão de acordo quanto ao diagnóstico do que ocorre no campo religioso brasileiro: incremento do pluralismo institucional e acentuação do subjetivismo religioso.  Ocorre que elas divergem no significado dado a estes eventos. Nesta polêmica, ambas as posições recorrem a Max Weber. No caso da teoria do retorno do sagrado, para negá-lo; no caso da teoria da secularização, para confirmá-lo.

Nossa proposição consiste em afirmar que para superar os problemas da discussão brasileira é preciso transcender a polarização entre a abordagem da “volta do sagrado” e a abordagem da “secularização”; pois cada uma delas está permeada por diferentes pressupostos valorativos, a saber: a defesa da religião no caso da primeira e a defesa do racionalismo no caso da segunda.  É neste sentido que nos propomos aqui uma “mudança de paradigma” que nos conduz ao encontro da “teoria da modernidade religiosa”.

3.    Teoria da modernidade religiosa

Esta abordagem, desenvolvida na França  por Daniéle Hervieu-Léger (com a colaboração de Françoise Champion) procura superar o debate centrado na polarização “retorno do sagrado” x “secularização” com base na noção de “recomposição” da religião na sociedade moderna. Portanto, esta teoria supera e integra ao mesmo tempo as abordagens anteriores, vistas como excludentes. De um lado não se nega  a modernidade e suas características seculares, como também não se nega a presença e a importância das religiões e religiosidades no contexto moderno. Daí o nome de “modernidade” (1o aspecto) “religiosa”  (2a aspecto) para esta abordagem. 

A idéia de modernidade religiosa não é tanto uma “teoria”, no sentido de um conjunto de proposições sistemáticas e abrangentes sobre determinado fenômeno. Trata-se antes de uma “abordagem”, no sentido de uma orientação geral que serve de guia para a compreensão dos dados de fato. Para reconstruirmos as características essenciais da abordagem de Hervieu-Léger, vamos examinar as diversas obras da autora, tentando demonstrar como, a partir desta orientação,  ela vai, paulatinamente,  acrescentando novos elementos para a compreensão  da religião na sociedade contemporânea.

3.1.    Abordagem

As primeiras proposições de Hervieu-Léger sobre este assunto foram desenvolvidas em sua obra seminal intitulada “Vers un neauvou christianisme” (1986). Trata-se de uma obra bastante ampla e globalizante, que analisando a situação do catolicismo e do protestantismo nos dias atuais busca realizar uma verdadeira “sociologia do cristianismo ocidental”.  Este texto pode ser considerado como uma espécie de  “programa fundador” dos estudos desta pesquisadora, na medida em que desde sua introdução ela já manifesta a intenção de propor uma nova forma de compreender a questão da religião no mundo contemporâneo. Para fugir ao dilema entre a  idéia de retorno do sagrado, por um lado,  e a idéia de secularização por outro, ela afirma que a questão central da sociologia contemporânea da religião deve deslocar-se para entender “ a emergência de um tipo de relação à religião que não se inscreve na recusa pura e simples da modernidade, nem uma atestação pura e simples dos valores do mundo moderno” (1986, p.16). O que importa, portanto, é explicar “as produções religiosas desta modernidade no seu estágio atual e da relação do cristianismo com estas produções”  (1986, p.17). Para superar esta dicotomia e este antagonismo entre estas duas abordagens, Hervieu-Léger parte da seguinte hipótese:

Le processus historique de la modernité dissout la religion, dans le temps même ou l´utopie de la modernité, moteur de ce precessus, reconstitue en permanence les conditions d´une pensée qui  lit la distance presente entre la realité vécue et l´horizon utopique comme l´expression et le résultat de la tension entre deux mondes antagoniques: celui des déterminations quotidiennes, d´une part, celui des significations (ou se réalisent l´ordre et le sens des choses), d´autre part (Hervieu-Léger, 1986, p.224).

Em outros termos, o paradoxo da modernidade é que, se por um lado ela parece levar à abolição da religião, por outro, ela cria ao mesmo tempo uma utopia que possui a mesma estrutura do pensamento religioso. Nesta perspectiva, os novos movimentos religiosos que vemos hoje manifestam que a secularização não é o desaparecimento da religião confrontada com a razão. Ao contrário:“ c´est le processus de réorganisation permanente du travail de la religion dans une societé structurellement impuissante á combler les attentes qu´il faut susciter pour exister comme telle” (1986, p. 227). A análise deste processo de re-organização constitui a grande tarefa de uma “ sociologia do crer” que ainda está por fazer, afirma a autora. Mas, embora ao longo do seu livro Hervieu-Léger já aponte para algumas características do que ela chama de “cristianismo pós-moderno” (a revitalização do carisma, a religião das comunidades emocionais[16] e o ecumenismo), será somente nas suas obras posteriores que a busca do entendimento da produção religiosa da modernidade começa a ser delineada.

3.2.    Conceito de religião

Para realizar esta tarefa, Léger resolve enfrentar uma das problemáticas centrais da sociologia da religião: a própria definição do fenômeno religioso (La religion pour memoire, 1993). Nesta obra é o próprio conceito de religião que é problematizado, a partir da constatação da perda de nitidez que separava rigidamente as esferas do sagrado e do profano. O que é preciso  explicar  então é a expansão de uma religiosidade invisível ou difusa, que faz transbordar os limites do religioso, levando a autora a sustentar a tese da “desregulação institucional” da religião.

Do ponto de vista sistemático, é possível reconhecer na sociologia contemporânea basicamente duas formas de definir a religião: uma perspectiva inclusivista e outra exclusivista, ou seja, uma perspectiva ampla e outra restrita. Na primeira visão, a religião é um sistema de significação, cujo papel funcional pode se estender para além das instituições religiosas (religião invisível). Na segunda, a religião está circunscrita às instituições propriamente ditas. Ambas são limitadas, pois a primeira se preocupa apenas em mostrar a expansão das religiões para outras esferas da vida social, enquanto a segunda fica presa a uma definição histórica das religiões. De qualquer forma, Hervieu-Léger afirma que as duas dimensões propostas por estas abordagens – o lado institucional e não institucional – devem ser levadas em conta em uma definição sociológica do fenômeno religioso.  Já a tentativa de retomada da categoria de sagrado como fundamento da religião esbarra em dois problemas: 1) ela toma as religiões históricas como modelo e, 2)  enquanto fonte de uma experiência emocional fundadora ela não é exclusiva da religião.

Com base nesta revisão histórica e teórica, Hervieu-Léger procura então abrir caminho para uma nova definição do fenômeno religioso que não coloca ênfase sobre o conteúdo das crenças, mas acentua - acima de tudo - as mutações na estrutura do crer, que ela procura definir da seguinte forma:

l’emsemble de convictions, individuelles et collectives, qui ne relèvent pas du domaine de vérification, de l’expérimentation, et, plus largement, des modes de reconaissance et de controle que caractérisent le savoir, mais qui trouvent leur raison d’être dans le fait qu’elles donnent sens e cohérence à l’expérience subjective de ceux qui les tiennent (Hervieu-Léger, 1993, p.105).

A produção do crer, insiste a pesquisadora, não responde primariamente à questão da produção do sentido. Não se trata tanto de pensar o lugar dos atores sociais em um mundo entendido como reflexo de uma ordem natural. Ao contrário, trata-se de responder à demanda por segurança, ou seja, situar-se em um espaço social aberto, no qual a mudança e a inovação são colocadas como normas. Os modos de crer seriam uma forma de resolver o constante problema da incerteza, própria da modernidade. Esta, embora tenha debilitado às religiões tradicionais, não cancelou as formas de crer, que são cada vez mais individuais, subjetivas, dispersas e feitas de diversas combinações, ou,  em uma única palavra, fluidas. Desta forma, Hervieu-Léger logra “dessencializar” ou mesmo “desubstancializar” o conceito de religião. Apenas um elemento serve ainda para especificar a crença religiosa: o tipo de legitimação dado ao ato de crer, que, na hipótese da autora, invoca sempre a autoridade de uma tradição. Assim, chega-se a seguinte definição de religião: ”Une religion est un dispositif idéologique, pratique et symbolique par lequel est constituée, entretenue, dévelopée et controlée la conscience (individuelle et collective) de l’appartenance à une lignée croyante particuliére” (1993, p.119).

Hervieu-Léger parte do princípio de que com a crise das “metanarrativas” (evolução, progresso, revolução, etc.), a sociedade moderna encontra-se definitivamente em uma realidade pós-tradicional. Embora reconheça as contribuições dos pós-modernos no sentido de detectar este fenômeno,  a autora prefere recorrer a noção de “alta modernidade” de Giddens para afirmar que, neste cenário de crise, incerteza e risco, a religião, como forma de crer que busca re-inventar memórias coletivas, acaba sendo uma forma de situar-se na modernidade. O que temos, portanto, é uma religião pós-tradicional, que re-inventando tradições espraia o sentido do religioso em vários espaços da vida social, ou mesmo dá origem – às vezes – a grupos religiosos. Neste cenário, afirma a autora, a discussão sobre a secularização está ultrapassada. O mais importante para a sociologia da religião seria explicar  a “des-institucionalização” radical do religioso em detrimento das religiões históricas. Aliás, o maior desafio das grandes religiões não está em situar-se em uma realidade secularizada, mas em como enfrentar a dinâmica de circulação dos signos religiosos. De que forma elas podem opor uma memória verdadeira às bricolagens subjetivas dos indivíduos? A desregulação institucional do religioso está diretamente ligada a subjetivação das práticas sociais na alta-modernidade.  Naturalmente, as religiões institucionais buscam reagir a este processo, seja apelando para formas emocionais de prática religiosa (sem referência a uma tradição), seja através de um processo de racionalização cultural, na qual as diferentes expressões religiosas são apresentadas  como valorização da diversidade e pluralidade.

3.3. Religiosidade contemporânea

Após este trabalho de reconstrução teórica que desemboca em uma nova definição do fenômeno religioso, será na obra “Le pèlerin et le converti” (1999), que Danièle Hervieu-Léger vai nos oferecer uma visão panorâmica da paisagem religiosa moderna, tomando como ponto de partida o cenário francês, e duas figuras exemplares da religiosidade contemporânea: o peregrino e o convertido. Nesta obra, o trabalho da autora se desloca do plano analítico para o plano empírico, visando discutir especialmente três conjuntos de questões: 1) o individualismo religioso contemporâneo, 2) as novas formas de comunalização religiosa e,  3) as relações entre religião e laicidade (no caso da República francesa).

De acordo com a autora, o que caracteriza a nossa época não é tanto à indiferença religiosa ou a descrença; mas,  acima de tudo, o fato de que as crenças religiosas escapam ao controle das grandes igrejas e das instituições religiosas.  Por isso, a grande característica da modernidade religiosa é a tendência geral para a individualização e a subjetivação da vida religiosa. O aspecto decisivo desta des-regulação  é sobretudo a liberdade dos indivíduos para “bricolar” seu próprio sistema de crenças, tomando emprestados diversos elementos das religiões institucionalizadas. Estas bricolagens se diferenciam segundo as classes, o sexo, as gerações e outros fatores sociais. Há uma tendência a simbolização nas camadas superiores e uma tendência de substancialização nas camadas populares (como mostra o caso da crença no demônio). Mas, isto não significa que os indivíduos não tenham qualquer tipo de identificação confessional. O que ocorre é que a pertença institucional não determina o conteúdo das crenças. Identidade confessional e identidade de crenças são hoje coisas distintas.  Sob o aspecto político, este individualismo religioso tem uma dupla face. Por um lado, ele leva a um ecumenismo de valores, na medida em que respeita todas as religiões. Por outro lado, estas novas combinações religiosas podem servir também para a reafirmação de identidades coletivas diante do cenário de atomização e fragmentação da alta modernidade.

Hoje, a identidade religiosa não é mais herdada e sim escolhida livremente pelos indivíduos. Por isso é preciso explicar como se dá de forma individual a construção de uma identidade de crença.  Para responder a esta pergunta chave da sociologia da modernidade religiosa, Hervieu-Léger nos propõe como hipótese a tese de que os processos de identificação religiosa de nossas sociedades modernas passam pela livre combinação de quatro dimensões típicas de identificação, que são:

1)    dimensão comunitária: conjunto dos marcos sociais e simbólicos que definem as fronteiras do grupo religioso e permitem distinguir aqueles que são membros e aqueles que não o são;
2)    dimensão ética: aceitação de determinados valores ligados a mensagem religiosa de uma determinada tradição religiosa. Esses valores podem ser apropriados sem necessariamente haver  adesão comunitária;
3)    dimensão cultural: conjunto de elementos cognitivos, simbólicos e práticos que constituem o patrimônio de uma tradição particular, como livros, práticas, códigos rituais, histórias, crenças, arte, etc.;
4)    dimensão emocional: é a experiência afetiva associada à identificação, ou ainda uma experiência elementar de comunhão coletiva, que pode levar ou não a adesão comunitária.

Cada uma destas dimensões pode servir de base para a construção e reconstrução de uma determinada identidade religiosa. Para ilustrar esta hipótese, a autora toma como exemplo o caso dos jovens cristãos da Europa. Combinando duas das dimensões acima apontadas, podemos encontrar seis tipos ideais de identidade religiosa cristã, a saber:

1.    Cristianismo afetivo: combina a intensificação emocional com o sentimento de pertença comunitária. É o caso dos jovens que participam das jornadas mundiais do Papa com a juventude e que, após, passam a aderir à comunidade religiosa.
2.    Cristianismo patrimonial:  combina a dimensão cultural e a dimensão comunitária. A identidade religiosa é dada pela reafirmação da tradição, como é o caso das correntes neo-tradicionalistas da França.
3.    Cristianismo humanitário:  combina a dimensão emocional e a dimensão ética. Trata-se de pessoas sensíveis às injustiças do mundo e que procuram engajar-se em causas humanitárias, sem privilegiar o conteúdo político de sua ação.
4.    Cristianismo político: combina a dimensão comunitária e a dimensão ética. Trata-se de jovens que procuram engajar-se politicamente para promover os valores cristãos na sociedade. É o caso da Juventude Operária católica, por exemplo.
5.    Cristianismo humanista: é o reconhecimento de um enraizamento cultural, combinado com a aceitação de um conjunto de valores morais próprios do cristianismo. Trata-se de uma atitude predominante entre os intelectuais.
6.    Cristianismo estético: combina a dimensão emocional e a dimensão cultural. É o caso dos jovens que freqüentam os santuários clássicos da Europa.

É importante lembrar que estas diferentes identidade religiosas não devem ser tomadas em sentido absoluto. São antes de tudo trajetórias religiosas, sempre fluidas e sempre abertas a novas composições e recomposições.

Durante sua história, a sociologia da religião tomou como exemplar para seus estudos a figura do “praticante”, ou seja, aquele que manifesta na sua vida ordinária o liame que existe entre suas crenças e seu pertencimento religioso. Mas, para captar as nuançes da religiosidade moderna, sempre em movimento, Hervieu-Léger se propõe partir de outros tipos sociais próprios desta modernidade: o peregrino e o convertido. O peregrino emerge como uma figura típica do religioso em movimento em um duplo sentido. Ele mostra, primeiramente, a fluidez dos conteúdos de crença que ele mesmo constrói e, por outro lado, a incerteza e mobilidade das associações comunitárias possíveis.  A outra figura que nos revela os traços fundamentais das identidades religiosas em movimento da modernidade é a figura do “convertido”. Em uma sociedade onde a religião tornou-se uma escolha privada, a conversão toma o sentido de uma escolha individual na qual se exprime no mais alto grau a autonomia do sujeito crente. Entre as figuras dos convertidos, podemos reconhecer três modalidades principais: 1) O indivíduo que muda de religião, seja aquele que rejeita uma identidade religiosa herdada e assumida para assumir uma outra, seja aquele que abandona uma identidade religiosa imposta e não assumida para assumir uma nova fé; 2) O indivíduo sem religião que resolve adotar uma determinada identidade religiosa e; 3) O terceiro tipo é a figura dos “re-afiliados” ou dos convertidos do interior, ou seja, aqueles que passam a viver de fato uma identidade religiosa que até então era apenas formal.

Quais são as relações entre o individualismo religioso e o individualismo moderno? Seria um erro considerar o individualismo religioso como precursor do individualismo moderno ou, ao contrário, considerar o individualismo religioso como fruto do individualismo moderno. O primeiro se separa do segundo na medida em que valoriza o sujeito apenas como caminho para chegar a Deus e, em segundo lugar, ele desvaloriza absolutamente as realidades intra-mundanas. Diante desta constatação, a autora conclui que o que caracteriza o individualismo religioso é a sua absorção no individualismo moderno. Em outros termos, a religiosidade contemporânea não só afirma o valor do sujeito de uma parte, mas também a valorização do mundo de outra parte.

O segundo problema fundamental desta obra é a discussão da  relação entre  o individualismo religioso e a formação de comunidades religiosas. Diante deste extremo individualismo religioso moderno, ainda são possíveis formas de agrupamento religioso? Eles ainda são necessários? Apesar de paradoxal, quanto mais individuais e compostas (bricolagem) são as crenças dos indivíduos, mais eles necessitam compartilhar suas experiências espirituais com outros indivíduos. Neste sentido, a autora distingue quatro tipos de regimes de validação de crenças, com suas instâncias e critérios:

1)    autovalidação: o próprio indivíduo e sua experiência são a instância e o critério de validação;
2)    validação mútua: a instância de validação é o outro e o critério de validação é a autenticidade. Portanto, este regime de validação opera de forma intersubjetiva;
3)    validação comunitária: a instância de validação é o grupo e o critério de validação é a coerência. Ou seja, o que importa é o engajamento de cada um em tarefas militantes que confirmam sua crença;
4)    validação institucional: a instância de validação é a instituição religiosa (sacerdotes, gurus, etc.) e o critério de validação é a conformidade com seus ensinamentos.

O que podemos constatar hoje é que os regimes de validação predominantes na sociedade atual são a auto-validação e a validação mútua. O movimento de desinstitucionalização do religioso no mundo moderno, portanto, pode conduzir a dois movimentos opostos. Por um lado, uma relativização das normas, crenças e práticas religiosas fixadas pelas instituições religiosas, em nome da busca individual da verdade e do sentido da vida. A única forma de societarização desta forma de religiosidade é a validação mútua das crenças, ou seja, a troca comum de experiências. Por outro lado, existem também a formação de pequenos grupos de verdade absoluta (as chamadas seitas[17]), ao qual corresponde a validação comunitária da crença.

Diante deste quadro, a autora propõe-se a repensar as relações entre o Estado e a esfera religiosa, propondo um novo modelo de laicidade: a laicidade mediadora. Assim, em vez de um Estado neutro e indiferente as religiões, ela sugere um Estado cooperativo, que promova em união com as diversas famílias espirituais a produção de referências éticas, a preservação da memória e a construção do tecido social. Por outro lado, as próprias religiões devem promover entre si o diálogo cooperativo e ecumênico. Quanto ao Estado, não lhe cabe negar o estatuto religioso a qualquer agrupamento social que o reivindique, mas a invocação da liberdade religiosa deve sempre vir acompanhada da adesão aos direitos humanos e valores democráticos. De qualquer forma, o Estado deve começar a reconhecer a contribuição que as diferentes famílias religiosas em diálogo podem oferecer para a vida pública.

3.4.  Reflexões finais

Para prosseguir em nossa investigação, vamos dedicar as linha finais deste capítulo a desenvolver duas questões. Em primeiro lugar, procura-se mostrar de que forma a teoria da modernidade religiosa pode nos oferecer uma alternativa para superar os impasses teóricos da sociologia da religião no Brasil. Em segundo lugar, procuramos mostrar as conexões entre a teoria da “modernidade religiosa” e a teoria da “modernidade técnica”. 

Olhando de forma retrospectiva a produção teórica de Hervieu-Léger, podemos perceber como ela procura enfrentar a questão das produções religiosas da modernidade em um duplo sentido: teórico e empírico. Do ponto de vista teórico, ela rejeita as concepções substantivas do fenômeno religioso, para concebê-lo como um modo de crer, ou seja, como um tipo de crença fundada no apelo a uma tradição. Isto lhe permite entender a religião na sociedade moderna para além dos seus aspectos institucionais. A desregulação do campo religioso significa que a religiosidade contemporânea é essencialmente subjetiva. São os próprios indivíduos que procuram moldar seu padrão de crenças e suas práticas religiosas. Portanto, se podemos falar de secularização, esta não implica tanto no desaparecimento ou no enfraquecimento da religião na sociedade moderna.  A principal marca da religiosidade moderna é a subjetivação da conduta religiosa.

Desta forma, a reflexão teórica de Léger  nos permite superar dois dos impasses da reflexão teórica da sociologia das religiões no Brasil. 

O primeiro é a sua excessiva fixação na oposição entre os  defensores da secularização e os teóricos da pós-secularização (retorno do sagrado). O que a teoria da modernidade religiosa nos ensina é que não se trata nem de defender nem de negar a secularização. Trata-se apenas de entender a produção religiosa levando em consideração o próprio contexto da modernidade. A teoria da modernidade religiosa, portanto, nos proporciona uma mudança de paradigma que nos permite ver as relações entre religião e modernidade de um novo ângulo. Não mais destacando o declínio da religião na realidade secular (secularização) e nem sugerindo o declínio da realidade secular diante de uma suposta revanche das religiões (retorno do sagrado). Portanto, para pensar a realidade religiosa do Brasil contemporâneo, marcada pela pluralização de denominações religiosas e pelo subjetivismo religioso, é preciso considerar como, a partir da modernização da sociedade brasileira, opera-se também uma modernização no cenário religioso. Em outros termos, é preciso verificar como se dá a produção religiosa dentro deste mesmo contexto. Isto torna necessário também focar nossa atenção no processo de “recomposição” do religioso diante de um cenário marcado pela desregulação institucional do campo religioso. Esta é a marca característica da religiosidade contemporânea. Esta é também a marca do cenário religioso no Brasil. Nem seu declínio, nem sua re-afirmação. É de sua “recomposição” que desejamos tratar.

A teoria da modernidade religiosa também nos ajuda a deslocar a importância que o paradigma da secularização atribui ao problema da magia nas religiões[18]. Este conceito é central neste paradigma, pois a secularização é entendida como recuo da magia. É por isso que a sociologia da religião no Brasil acabou privilegiando este conceito, seja para tomá-lo como indício de pós-secularização, seja para confirmar a própria secularização. Não se trata simplesmente de negar a presença e a importância de elementos mágicos no campo religioso brasileiro. Mas, superando uma abordagem centrada no problema da secularização, o problema da magia deixa de ser o elemento central para a compreensão do cenário religioso brasileiro. Isto nos permite pensar as características do campo religioso a partir de outros elementos.

Por isso, a partir da teoria da modernidade religiosa, abre-se o caminho para colocar o conceito de “mística” como um dos eixos centrais para pensar a realidade religiosa do Brasil. Tal fato é possível porque, como ainda desejamos mostrar, existe uma íntima ligação entre os traços subjetivos do comportamento religioso contemporâneo e a religiosidade mística. Em outros termos, a desregulação institucional do campo religioso apontada por Hervieu-Léger abre caminho para práticas religiosas subjetivas ou místicas, como ainda teremos ocasião de demonstrar.

A segunda questão que devemos esclarecer melhor diz respeito as conexões que podemos estabelecer entre a teoria da modernidade religiosa com a teoria da modernidade técnica. Nesta pesquisa, a abordagem da modernidade técnica cumpre o papel de nos fornecer uma “teoria social”, enquanto a abordagem da modernidade religiosa nos fornece uma teoria do “lugar social” da religião na modernidade. Ambos os esforços são necessários, pois não podemos prosseguir em nossa investigação sem uma teoria para pensar o status da religião na vida social moderna. Por outro lado, a discussão sobre religião e vida moderna tem como pano de fundo necessário uma concepção de modernidade. Em outros termos,  a teoria da modernidade técnica cumprirá uma função de “macro-teoria”, enquanto a teoria da modernidade religiosa cumprirá a função de teoria de “médio-alcance”. A primeira nos fornecerá uma concepção de modernidade e a segunda uma concepção do lugar da religião no interior da modernidade.

Mas, qual é o elemento que torna ambas as teorias compatíveis entre si? De que forma podemos estabelecer o acoplamento da teoria da modernidade religiosa no interior da teoria da modernidade técnica?

Acontece que a teoria da modernidade técnica, ao partir do pressuposto da contingência, não estabelece um vínculo de necessidade entre religião e modernidade. Ou seja, a racionalidade contingente da técnica não determina de forma necessária o destino da religião na vida social moderna. Se a relação entre a modernidade e a religião é contingente, isto significa que a modernidade técnica pode “acoplar-se” ou “moldar-se” a diferentes realidades religiosas. A técnica moderna, como mostrou Brüseke, é “indiferente” aos modelos políticos e culturais das diversas sociedades. Isto significa, por outro lado,  que também as religiões podem “reagir” ou moldar-se e acoplar-se de forma diversas as condições da técnica moderna. De qualquer forma, a ligação entre religião e modernidade é sempre contingente, e não pode ser pensada de forma “apriori”, seja no sentido da afirmação da modernidade por conta do  declínio da religião (secularização), seja no sentido da afirmação da religião por conta da “crise” da modernidade (retorno do sagrado).

É neste contexto que emerge a teoria da modernidade religiosa. Esta teoria cumpre o papel de nos explicar, a partir da observação empírica, de que forma a ligação sempre contingente entre modernidade e religião pode ser analisada concretamente no quadro da sociedade contemporânea. E, o que esta teoria nos ajuda a mostrar é que, com o desenrolar da modernidade, as formas de crer, longe de serem negadas pela modernidade, ou mesmo longe de negar a própria modernidade, vivem um processo de “recomposição” que, a partir da desregulação do campo religioso (subjetivação), apontam para novas tendências na conduta religiosa dos indivíduos contemporâneos.

É a partir deste quadro teórico que busca-se entender o discurso místico da teologia da libertação mostrando de que forma ele redefine as relações entre catolicismo libertador e modernidade no Brasil. Neste caso, a teoria da modernidade técnica nos servirá como referência para conceituar nossa concepção de “modernidade social”, enquanto a teoria de Hervieu-Léger aponta para nossa concepção de “modernidade religiosa”. Com base nestes pressupostos, examina-se, no próximo capítulo, de que forma a teoria da modernidade religiosa nos ajuda a compreender, sob um novo ângulo, as transformações do catolicismo no Brasil.



[1] Utilizamos-nos da expressão “campo religioso” conforme a interpretação de Bourdieu (1974).
[2] Sobre os protestantes históricos, veja-se o texto de Mendonça e Velasques Filho (1990).  
[3] Uma análise crítica das terminologias e classificações sobre o protestantismo brasileiro, pode ser encontrada no texto de Giumbelli (2001, p. 87-119).  Para uma análise de cunho histórico, conferir o trabalho de Mariano (1996).
[4] Para um estudo das religiões afro-brasileiras conferir o clássico de Bastide (1972). Consulte-se também Ortiz (1978) e Prandi (1996 a).
[5] Uma análise crítica sobre a suposta “diversidade religiosa no Brasil” pode ser encontrada em Pierucci (2002).
[6] Avaliações do cenário religioso brasileiro a partir dos dados do último censo podem ser encontradas também em Montero e Almeida (2000) e em Sanchis (1995a e 1997). 
[7] Este autor também discute o problema das relações entre liberdade religiosa e secularização, vide-se Oro (2004, p. 317-336).
[8] Veja-se, neste sentido, as proposições de (Colliot-Thellénè, 1995, p.61-81).
[9] Referimo-nos aqui a “Introdução” (Vorbemerkung) que Weber escreveu aos “Ensaios reunidos de sociologia da religião”  e que, na edição composta por Parsons aparece como sendo a introdução da Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo.
[10] De acordo com um minucioso estudo efetuado por este autor (2003), o termo desencantamento aparece dezessete vezes na obra de Max Weber.
[11] Isto não quer dizer que o debate reduz-se a apenas estas duas posições. Outras visões do cenário religioso brasileiro existem em abundância. A título de exemplo, veja-se as chamadas “abordagens econômicas” do fenômeno religioso (Frigerio, 2000, p. 125-144).
[12] Também podem ser consultados balanços de literatura anteriores realizados por Alves (1978), Zaluar (1983) e Fernandes (1984).
[13] Sobre este mesmo assunto, ver ainda o texto de Pierucci “Interesses religiosos dos sociólogos da religião” (1997a, p. 249-262).
[14] Para uma crítica do texto de Pierucci veja-se o texto de Marcelo Camurça (2001b, p. 67-86).
[15] Uma crítica da teoria da secularização, mas que não assume as premissas da teoria do sagrado é o texto de Monteiro (2003).
[16] Para uma análise mais aprofundada da autora  sobre a centralidade do aspecto emocional na religiosidade contemporânea, conferir Hervieu-Léger (1989). Um artigo sobre este tema em português também pode ser encontrado na Revista “Religião e Sociedade” (Hervieu-Léger, 1997).
[17] Para uma discussão sobre o problema das seitas na França, veja-se a coletânea de Champion e Cohen (1999). Uma análise comparativa do caso francês com o caso brasileiro é realizada por Giumbelli (2002).
[18] Para uma apresentação sobre o conceito de magia, veja-se o texto de Pierucci (2001).
id-mod�~wn'c �` ento integral da filosofia e teologia tomista está exposto na maior construção arquitetônica de todos os tempos, infelizmente inacabada, por morte prematura de seu quase divino construtor.

Método, clareza, lógica, ordem nas idéias, divisões e subdivisões, tudo se vai dispondo de maneira extraor­dinária.
Os pensadores que antecederam o mestre trataram, de maneira esparsa, aqui e ali, de grandes teses filosófico­-teológicas, nunca, porém, em conjunto, de maneira inte­gral e panorâmica, como fez Tomás de Aquino, na Suma Teológica.
Divide-se a Suma em três partes maiores, cada parte se resolve em questões, as questões em artigos.
A primeira parte estuda Deus, o Anjo e o Homem; a segunda parte é consagrada à moral; a terceira parte estuda a encarnação do verbo, os mistérios de suas humilhações e vitórias. Interrompe-se a obra na altura em que seu autor principia a explicar os Sacramentos.
Encerra a Suma 613 questões, 3.106 artigos e mais de 15.000 argumentos sobre pontos de moral e de dogma, sempre seguidos de citações dos Santos Padres.
Salienta-se Santo Tomás no campo da lógica, da metafísica, da antropologia, da gnoseologia, da cosmolo­gia, da ética, da teodicéia, da política, da filosofia e teo­lógia.
Em lógica, Tomás é um aristotélico, utilizando-se da parte formal do raciocínio estagirita; na metafísica, com maior amplitude do que o mestre grego, Tomás revive as noções de atos e potência, expõe o problema das cate­gorias, detendo-se na substância e nos acidentes, discorre sobre as quatro causas e faz a distinção fundamental entre ente e essência; na antropologia, explica a união entre alma e corpo, a primeira, princípio imaterial que se une ao corpo, como a forma à matéria, o ato à potên­cia, formando um composto substancial — o homem, que, quanto à vontade, é livre; na gnoseologia ou teoria do conhecimento, Tomás revive o princípio do nihil est in intellectu quod prius non fuerit in sensibus, nada há no intelecto que não tenha estado nos sentidos, básico para o seu sistema e interpretado de maneira clara e precisa. No conhecimento, só existente mediante a relação entre sujeito cognoscente e objeto conhecido o primeiro procede a uma assimilação vital do segundo. Há dois tipos de conhecimentos, o sensitivo e o intelectual. Por meio de ambos a alma entra em contato direto e imediato com a realidade; na cosmologia, aceita a doutrina dos quatro elementos, da incorruptibilidade dos astros, da composi­ção dos corpos em matéria e forma; na ética, mostra que o fim último do homem é procurar a posse do bem infi­nito, jamais dos bens finitos, que envilecem a dignidade humana; na teodicéia, Santo Tomás atinge momento de grande esplendor, superando os argumentos de Aristóte­les na demonstração da existência de Deus; na política, exposta no opúsculo De regimine principium, Tomás sus­tenta que “quando os seres livres, reunidos em sociedade têm um soberano que zela pelo bem comum, a sociedade, o governo é reto, justo e convém aos homens livres; enfim, na filosofia e teologia, mostra o mestre as relações harmônicas entre a razão e a fé, provando que a filosofia e a teologia são duas ciências distintas, sem dúvida, mas não antagônicas. Poderá haver muitas vezes a coincidên­cia do objeto material, de ambas as ciências, a existência de Deus, por exemplo, mas cada uma delas (objeto for­mal) encara o mesmo objeto, por ângulos diversos.

4.4.5 O ESCOLA TOMISTA

O tomismo fez escola. Encontrou adeptos que o segui­ram, citando-se, entre eles, Pedro Tarentaise, professor de teologia e provincial dos dominicanos, que resumiu e defendeu as grandes teses do sistema; Vicente de Beauvais, autor do Magnum Speculum; Oilles de Lessines e Herveu de Nédellec.
Enfim, Dante Alighieri, escrevendo, em versos, o poema famoso a Divina Comédia, expõe com grande bele­za poética as idéias mais correntes do tomismo, poden­do-se, com certa razão, afirmar que a Divina Comédia é a Suma Teológica posta em versos.

4.4.6 OS ANTI-TOMISTAS

O espírito brilhante e polêmico de Santo Tomás de Aquino iria, evidentemente, suscitar oposição no seio da própria Igreja, chegando-se mesmo a proibir a defesa e exposição de algumas teses do doutor angélico. Com o tempo, entretanto, serenaram os ânimos, esfriaram as paixões e a doutrina de Tomás volta a propagar-se, ga­nhando novos adeptos.
Entre os mais veementes opositores, citam-se os nomes, hoje quase desconhecidos, de Guilherme de La Mare, que escreveu contra Tomás o livro Correptorium fratris Thomae, e João Peckham, arcebispo de Cantuária, que proibiu a divulgação de algumas teses tomistas.

4.4.7 CONCLUSÂO

Impossível é negar a evidência. Santo Tomás de Aquino, aceitando ou reformulando o que de melhor pro­duzira o gênio grego, em especial, Aristóteles, revive as teses máximas de Santo Agostinho, passa pela filosofia judaica e árabe, para compor o mais extraordinário con­junto arquitetônico teológico-filosófico de todos os tem­pos, edifício que há mais de 700 anos resiste a todas as invectivas que contra ele se levantam — a Summa Theologicae, sistema coerente e sintético, onde se refine o que de melhor produziram as inteligências do mundo pagão e cristão, convergência possível pelo espírito lógico e inspirado que tudo fundiu, numa contribuição humana, em que transparece o divino.
           


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