CAPÍTULO II
MODERNIDADE
RELIGIOSA
Este capítulo busca situar o problema desta pesquisa no contexto da
discussão sobre as características do campo religioso brasileiro. Primeiramente
demonstra-se que, no Brasil, seguindo a
tendência da discussão internacional, a pesquisa sociológica sobre o tema da
religião encontra-se hoje polarizada em
torno de duas posições antagônicas: a teoria da “secularização” e a teoria do
“retorno do sagrado”. Nosso objetivo é buscar superar esta oposição e abrir
caminho para uma investigação que toma o
tema da mística como seu elemento central. Proceder-se-á da seguinte forma. Nos
dois primeiros tópicos apresenta-se um retrato do campo religioso[1]
brasileiro e de suas principais interpretações analíticas. No terceiro momento,
apresenta-se a “teoria da modernidade religiosa” de Hervieu-Léger e
explicita-se: 1) em que medida ela representa uma alternativa teórica ao
impasse dos estudos sociológicos sobre a
religião no Brasil e, 2) em que medida esta teoria pode nos ajudar a pensar –
sociologicamente – o tema da mística.
1. O CAMPO
RELIGIOSO NO BRASIL
Neste tópico vamos nos debruçar sobre duas questões em particular: 1) a
composição denominacional das religiões no Brasil e; 2) o comportamento
religioso do brasileiro. Ambas as discussões serão importantes para situar, em
seguida, as principais interpretações analíticas sobre o campo religioso brasileiro.
1.1.
Religiões
Os dados mais recentes sobre o campo religioso brasileiro nos foram
fornecidos por uma pesquisa do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e
Estatística) realizada no ano de 2000. Conforme o levantamento da pesquisa,
este seria o retrato das religiões no Brasil:
Tab. 01 – Campo
religioso brasileiro
|
|
Religião
|
Percentual
|
Católicos
|
73.9%
|
Protestantes
|
5.0%
|
Pentecostais
|
10.6%
|
Outras religiões
|
3.2%
|
Sem religião
|
7.4%
|
Fonte (Vários autores. Atlas da
filiação religiosa, 2003, p. 34).
Em
relação a este quadro pode-se perceber que, apesar do declínio da igreja
católica, o catolicismo continua a ser a denominação predominante no Brasil,
com 74% de adeptos. Em seguida aparecem
os Evangélicos que abarcam o total de 15.6% dos entrevistados. O terceiro
segmento, note-se, é formado pelos que se declararam “sem religião” e que
perfazem 7.4% do total. As outras religiões representam apenas 3.2% deste
universo.
Para uma análise mais pormenorizada deste
quadro, pode-se complementá-lo por pesquisa coordenada por Pierucci e Prandi
(1996) e que foi realizada pelo Instituto Data Folha em 1994. Desta forma,
teríamos os seguinte números:
Tab.
02 – Denominações religiosas no Brasil
|
||
Católicos
|
Tradicionais
|
61.4%
|
Carismáticos
|
3.8%
|
|
CEBs
|
1.8%
|
|
Outros movimentos
|
7.9%
|
|
Total
|
74.9%
|
|
Evangélicos
|
Históricos
|
3.4%
|
Pentecostais
|
9.9%
|
|
Total
|
13.3%
|
|
Kardecistas
|
|
3.5%
|
Afro-brasileiras
|
Candomblé
|
0.4%
|
Umbanda
|
0.9%
|
|
Total
|
1.3%
|
|
Outras
|
|
2.0%
|
Sem religião
|
|
4.9%
|
Fonte (Pierucci e
Prandi, 1996, p. 216).
Utilizando
ambas as fontes, pode-se ter um excelente perfil do que acontece hoje com as
diversas denominações religiosas no Brasil.
O
catolicismo, ainda que seja a religião predominante, apresenta-se em franco
declínio numérico. Como mostra o quadro,
o principal fator que concorre para isto é que somente 13.5% de católicos assumem pessoalmente a prática regular de sua
fé, enquanto a maioria (61.4%) vive o catolicismo de forma tradicional, ou
seja, como herança social. É por esta razão que o catolicismo é a grande fonte
de “conversões” e de expansão de novas denominações religiosas. Os dados de
Prandi e Pierucci mostram também a situação dos principais movimentos que
marcam a história da igreja católica no Brasil nos anos 80 e 90. As politizadas
Comunidades Eclesiais de Base – CEBs – ligadas à teologia da libertação, hoje
em declínio, representam 1.8% do universo total dos entrevistados. Já o
movimento da Renovação Carismática Católica– RCC – abarcaria 3.8% dos fiéis.
Finalmente, os católicos que pertencem a movimentos tradicionais do catolicismo
somam 7.9% dos entrevistados.
O
segmento mais dinâmico do campo religioso brasileiro são os chamados
evangélicos, que estão divididos em dois grandes grupos: os protestantes
históricos e os protestantes pentecostais. No grupo das denominações do
protestantismo histórico encontramos, entre outras, as igrejas Luterana, Batista, Presbiteriana,
Metodista, Episcopal e Congregacional. Este grupo têm apresentado pouco
crescimento, permanecendo, na prática, estagnados[2].
Diferentemente do que acontece com o mais dinâmico e, recentemente, o mais
estudado segmento da vida religiosa no Brasil: os protestantes pentecostais.
Como vimos, os pentecostais representariam hoje 9.9% da população religiosa
brasileira. O que chama a atenção dos estudiosos é o fato de que a expansão do
pentecostalismo se dá especialmente nas décadas de 70 e 80, apesar deste
movimento ter surgido no Brasil desde o início do século XX[3].
Apesar de pouco destacado, o terceiro grupo religioso no Brasil em
termos numéricos é o grupo dos “sem religião”, que perfazem hoje 4.9% da
população, número que chega a ser superior aos membros das igrejas do
protestantismo histórico (3.4%).
Os
kardecistas ou espíritas, que incorporam ao cristianismo o princípio da
reencarnação conforme a doutrina de Allan Kardec somam 3.5% de adeptos e são
encontrados especialmente entre os segmentos das camadas médias urbanas.
O
último grupo de religiões no Brasil são as religiões afro-brasileiras,
divididas em dois segmentos fundamentais: o candomblé e a umbanda. O membros do
candomblé, cujas raízes encontram-se no Brasil colonial, somam 0.4% da população. Já a Umbanda, que é mais
recente (anos 30) e funde princípios
espíritas com idéias do candomblé chega ao percentual de 0.9% de membros
declarados[4].
Esta breve apresentação e comentários sobre as denominações que compõem
o que chamamos de “campo religioso brasileiro”
revela que, apesar do ainda forte predomínio do catolicismo, o Brasil de
hoje apresenta uma maior diversidade religiosa. Mas, é bom que não se esqueça que,
em nosso país, o cristianismo (em suas
várias versões) é a religião predominante, excetuando-se o segmento
afro-brasileiro e as outras religiões que, juntas, somam apenas 3.3% ou, no
máximo 7.2% de indivíduos, se incluirmos na soma o grupo de pessoas sem religião[5].
Em resumo, podemos afirmar que, do ponto de vista institucional, a grande
característica do campo religioso brasileiro é o crescimento e a diversificação do “pluralismo
religioso”[6].
1.2.
Religiosidade
Do
ponto de vista teórico, são dois os tipos de produção desenvolvidos pelas
ciências sociais da religião no Brasil no sentido de analisar a comportamento
religioso dos brasileiros. Em uma linha mais quantitativo-estatística, existem
alguns estudos sobre as representações religiosas de determinados segmentos da
sociedade ou ainda de fiéis de
determinadas instituições religiosas (católicos e evangélicos). Por outro lado,
adotando uma linha mais qualitativa, vários trabalhos no Brasil procuram
identificar os elementos constituintes e comuns das representações e práticas
religiosas dos brasileiros.
Na primeira destas perspectivas, trabalhos recentes (Consorte, 1994;
Novaes, 1994 e 2001; Camurça, 2001a; Steil, Alves e Herrera, 2001; Cardoso,
Perez e Oliveira, 2001 e; Oro, 2002) têm se dedicado a pesquisar o
comportamento religioso de jovens universitários, captando importantes
tendências no formato das crenças e práticas deste segmento social. Mas, apesar
de seu valor, o alcance destas pesquisas é limitado, na medida em que parte de
um segmento bastante restrito da sociedade brasileira (jovens universitários,
especialmente os estudantes de ciências sociais), dificultando a generalização
de suas conclusões para abarcar o conjunto de crenças, representações e
práticas dos brasileiros.
Entre as pesquisas que procuram abarcar um público mais amplo, pode-se
citar como exemplos o levantamento feito
pelo ISER (Instituto Superior de Estudos da Religião), em 1994, a respeito dos
evangélicos; e o levantamento do CERIS
(Centro de Estatística Religiosa e Investigações Sociais) sobre os católicos,
realizado no ano de 1999.
A pesquisa realizada pelo ISER (Fernandes, 1998) no ano de 1994, na
região metropolitana do Rio de Janeiro, visitou 40.172 domicílios e entrevistou
1.332 pessoas. Quatro variáveis foram pesquisadas: 1) perfil social dos
evangélicos, 2) crenças e práticas religiosas, 3) relações de gênero, estrutura
familiar e práticas reprodutivas e 4) participação cívica e comportamento
político. Mas, embora a publicação da pesquisa termine com comentários de
autores consagrados da ciência social das religiões no Brasil (Pierre Sanchis,
Guilherme Velho, Cecília Mariz, Clara Mafra e Leandro Carneiro), não se chega a
uma conclusão única e definitiva. Na visão de Sanchis (1998, p.150-168), por
exemplo, o sucesso dos evangélicos
(especialmente da Igreja Universal do Reino de Deus), está em combinar aspectos
da religiosidade moderna com seus aspectos pré e pós-modernos.
Já
a pesquisa do CERIS (Souza e Fernandes, 2002), entrevistou 5.218 pessoas
(maiores de 18 anos) nas seis principais metrópoles brasileiras (Recife,
Salvador, Belo Horizonte, Rio de Janeiro, São Paulo e Porto Alegre), visando
identificar as principais tendências do catolicismo no Brasil. Organizando as
questões com base nas respostas de católicos ou não católicos, a pesquisa
preocupou-se em verificar quatro variáveis fundamentais: 1) crenças e
motivações religiosas, 2) prática religiosa e participação social, 3) meios de
comunicação e religião e 4) orientações ético-religiosas. Apreciando de forma
conjunta as indicações trazidas por cada uma das quatro variáveis pesquisadas,
a principal conclusão da pesquisa, segundo as “perspectivas pastorais”
elaboradas por Alberto Antoniazzi (2002, p.252), é a “fragmentação do universo
religioso brasileiro ou, mais exatamente, o peso crescente da decisão subjetiva
na escolha e na construção da religião de cada pessoa” .
Embora pesquisas de cunho quantitativo possam indicar importantes
tendências no comportamento religioso dos indivíduos, ela pecam pelo seu excessivo
grau de generalidade. Por isso, elas necessitam ser complementadas por estudos
mais específicos, especialmente de caráter qualitativo. Visando contemplar esta
lacuna, pode-se localizar também um conjunto de trabalhos que, através da
reflexão teórica (mais do que empírico-estatística), busca apontar para alguns
traços que seriam comuns no comportamento religioso no Brasil.
André Droogers (1987), por exemplo,
procura identificar o que ele chama de “religiosidade mínima brasileira”
(RMB). Este conceito refere-se a uma
religiosidade presente nos meios seculares e que é vinculada pelos meios de
comunicação e pela linguagem cotidiana. Ela está presente na fala de políticos,
esportistas, na televisão, no rádio, na propaganda, na música, em ditados e até
em pára-choques de caminhão. Seus temas principais são Deus, Jesus, a fé, a
oração e um relação bem humorada com a religião. Para este autor, esta religiosidade mínima
possui uma função ideológica: “Assim, a RMB contribui para a formação de uma
identidade cultural brasileira e para a supressão de tensões e conflitos, tanto
religiosos como seculares, que minam a unidade” (1987, p.86).
Ari Oro (1997), por sua vez, desenvolve a tese de que a modernidade
religiosa brasileira caracteriza-se, hoje, por três tendências fundamentais: a)
privatização da religião; b) o trânsito religioso e; c) ampliação e
deslocamento do sagrado. A privatização do sagrado “consiste no fato de que
cada indivíduo tende a moldar a sua própria religião apropriando-se de
fragmentos e de elementos provenientes de diversos e diferentes sistemas
religiosos” (1997, p. 42). O trânsito religioso é explicado por Oro da seguinte
forma: “outro modo de ser religioso atual consiste no trânsito entre diferentes
espaços sagrados e/ou sistemas de crenças, ou seja, na prática, a freqüência
simultânea a distintas religiões” (1997, p.43). Oro ainda explica que esta
forma de comportamento tem profundas raízes na sociedade brasileira,
especialmente por causa do que se convencionou chamar de sincretismo. Finalmente, a terceira tendência constatada
pelo pesquisador refere-se a indefinição das fronteiras entre religião e outras
esferas ou práticas da vida social, como a ciência, a arte, a medicina, a
filosofia, a ecologia, a psicologia, etc. Enfim, trata-se da sacralização de
esferas e instâncias não necessariamente religiosas[7].
Lísias Negrão (1997) adota como hipótese a existência de uma cultura
religiosa brasileira popular que incluiria um mínimo denominador comum. Esta
“religiosidade mínima brasileira” seria composta de cinco traços e
características fundamentais: 1) a concepção de que todas as religiões são boas
porque conduzem a Deus, 2) predomínio da concepção de divindade e da moral
cristã, 3) a relação privilegiada do crente com mediadores como os santos,
orixás, guias, caboclos e outros, 4)
crença nos espíritos dos mortos e em sua capacidade de comunicação com
os homens e, 5) crença de que a religião
é essencialmente uma forma de proteção contra os males do mundo. É justamente
em decorrência dos elementos acima apontados que este autor vê a possibilidade
da vivência de experiências religiosas plurais, tão comuns no indivíduo
religioso brasileiro.
Pierre Sanchis (2001) é mais
cauteloso e, em vez de “religiosidade mínima”, prefere indicar as diversas
“matrizes” comuns do mundo religioso brasileiro:
Não pretendo
falar do conteúdo da “religião” dos brasileiros, mas perguntar-se, em seu
conjunto, suas manifestações não revelariam – nas modalidades do jeito de se
constituírem – analogias, oposições e complementaridades ativadas
preferencialmente à margem das instituições que acabariam fazendo desse
conjunto um “campo” religioso com componentes mutuamente referidos, e por isso
um campo religioso reconhecível, porque determinado e particular.(Sanchis, 2001,
p.19).
A primeira destas modalidades seria a existência generalizada de uma
matriz comum à religiosidade brasileira: o cristianismo. O segundo elemento diz
respeito a preponderância de uma matriz ainda católica no Brasil. Isto se deve
não só ao caráter intrinsecamente sincrético desta tradição religiosa, mas
também tendo em vista o lugar central que o mito e o símbolo exercem na
liturgia católica. Uma terceira
modalidade da religiosidade brasileira teria sua origem na matriz indígena
(tupi-guarani) e é caracterizada por Sanchis como sendo espiritualista.
Trata-se da crença ampla e generalizada na existência dos espíritos (seja como
forem denominados). Em suma, o indivíduo religioso brasileiro alimenta uma
identidade plural e múltipla que “não corresponde necessariamente a
experiências religiosas individuais, segmentárias mas não isolantes” (2001,
p.27). Existe, portanto, na história brasileira a persistência de um habitus
flexibilizador, que constrói os sincretimos sem suprimir as diferenças.
Apesar da variedade de perspectivas que podem ser adotadas (quantitativa
ou qualitativa/teórica) e das múltiplas conclusões possíveis, pode-se notar que
uma das características mais destacadas pelo conjunto de estudos aqui
apresentados foi o fenômeno do “subjetivismo religioso”. Em outros termos,
tanto os estudos de cunho quantitativo quanto qualitativo vêm mostrando que a
religiosidade brasileira tem como uma de suas marcas fundamentais o
individualismo religioso, situação na qual é a própria pessoa que monta o seu
sistema de crenças de forma independente da filiação religiosa institucional
que, por isso mesmo, tende a ser também múltipla e plural (trânsito religioso).
2.
Interpretações
teóricas
A análise precedente do campo religioso no Brasil nos mostrou que, do
ponto de vista das religiões institucionalizadas, o Brasil vivencia um processo
de acentuação de seu pluralismo religioso.
Já do ponto de vista do comportamento efetivo dos agentes religiosos, o
traço característico da religiosidade brasileira é o subjetivismo religioso.
Todavia, “descrever” não significa ainda “explicar”. E, naturalmente, a ciência
social no Brasil não se furtou à tarefa de buscar as razões, motivações ou
fatores que poderiam explicar as tendências observáveis no campo religioso
brasileiro e na própria sociedade nacional. Neste tópico, apresentamos uma
visão panorâmica destes estudos e buscamos mostrar como o paradigma da
secularização tem sido o principal instrumento teórico na interpretação da
dinâmica da vida religiosa no Brasil. Comecemos por caracterizar, de forma
preliminar, o que entendemos por “paradigma da secularização”; para verificar,
após, de que forma este debate tem se
desenvolvido na ciência social brasileira.
2.1. Paradigma da secularização
O fato de utilizarmos a noção de “paradigma” para nos referirmos a
problemática da secularização já indica que não estamos nos referindo apenas a
um autor, mas a um conjunto de autores e teorias que partilham de pressupostos
comuns e de uma determinada tradição de pesquisa. O termo “secularização”
adentra no vocabulário das ciências sociais com a obra de Max Weber. Mas, como
paradigma predominante no campo dos estudos sócio-religiosos, ele emerge apenas
durante os anos 60. Neste período, os teóricos da religião vão retomar a
leitura de Max Weber destacando especialmente o seu conceito de “secularização”
como a chave interpretativa para a compreensão do declínio da religião no mundo
moderno. Trata-se, antes de tudo, de uma determinada leitura de Weber realizada
em função de uma demanda teórica específica, qual seja, entender o lugar da
religião na sociedade moderna. De
qualquer forma, isto nos obriga a começar a discussão sobre o paradigma da
secularização com uma reflexão sobre o sentido global da obra weberiana.
2.1.1. Max Weber
Por “sentido global”, estamos nos referindo aqui ao objetivo ou a
finalidade a que se propunham as análises comparativas que Weber efetuou entre
as religiões ocidentais e as religiões orientais. Trata-se, portanto, de
apreender o próprio cerne da obra weberiana. Em relação a este problema, duas
posições se destacam. Para um primeiro grupo de autores[8], a
preocupação básica de Weber é elucidar a
gênese do capitalismo ocidental moderno. Partindo da constatação de que existe
uma “afinidade eletiva” entre protestantismo e capitalismo no Ocidente; Weber
teria efetuado seus estudos sobre as religiões Orientais apenas para demonstrar
que a ausência deste tipo de religiosidade teria impedido o desenvolvimento
endógeno do capitalismo moderno nas sociedades não-ocidentais. Já para um segundo grupo de autores, a
problemática da obra weberiana é muito mais ampla do que meramente a gênese do
capitalismo ocidental moderno. Nesta versão, a obra de Weber procura realizar
um vasto estudo sobre o racionalismo ocidental. Em outros termos, o tema
central de sua obra é o processo de racionalização social que somente no
Ocidente teria chegado aos seus limites finais, desvencilhando-se totalmente da
magia. Gênese do capitalismo ou processo
de racionalização? Qual é a chave explicativa do conjunto da obra weberiana?
Recentemente, o interesse pela obra de Weber tem aumentado
significativamente, predominando uma nova versão da teoria weberiana que tem no
conceito de racionalização sua categoria central. Chamada normalmente de
evolucionista ou neo-evolucionista esta interpretação tem como seus principais
proponentes os estudos de Friedrich Tenbruch (1980) e Wolfgang Schluchter
(1985). A perspetiva destes autores também é retomada por Habermas ao
empreender sua incorporação de Weber na sua “teoria da ação comunicativa”
(1987). Nesta obra, o autor afirma explicitamente que a teoria da
racionalização é o fio condutor do projeto teórico weberiano:
Sin embargo,
utilizando como hilo conductor sua teoria de la racionalización, puede
reconstruir-se su proyecto en conjunto; esta perspectiva interpretativa, que ya
dominó en las discusiones de caráter predominantemente filosófico de los
anõs veinte, pero que después quedó
desplazada por una perspectiva estrictamente sociológica centrada en torno a Economia
y Sociedad, ha vulto a imponerse em los estudios recientes sobre Weber
(Habermas, 1987, p. 198).
Em sua interpretação, Habermas distingue em Weber duas jornadas de
racionalização. Como explica o autor,
enquanto na racionalização cultural
Weber “se interesa por la
racionalización de las imágenes del mundo”; na racionalização social ele
“se interessa por la materialización institucional de las estructuras de
consciência modernas, que se formaram en el processo de racionalización
religiosa, es decir, por la transformación de la racionalización cultural em
racionalización social” (1987, p. 227).
De fato, a maioria dos autores brasileiros recentes que tem buscado
utilizar-se das categorias weberianas para a compreensão da realidade social
brasileira têm partido da concepção que chamamos de (neo) evolucionista, que
parte das interpretações de Tenbruck, Schluchter e Habermas. Entre os teóricos
que mais têm se destacado neste esforço podemos mencionar Leonardo Avritzer
(1996), Jessé de Souza (1997 e 2000) e, especialmente, Antonio Flávio Pierucci.
Em artigo em que retoma o sentido
do termo secularização na obra de Max Weber, Pierucci (1998, p.43-73) demonstra
que, de forma geral, os conceitos de racionalização, desencantamento do mundo e
secularização costumam ser utilizados por muitos como sinônimos. Mas, insiste o
escritor, o conteúdo destes conceitos difere entre si. Acompanhando sua explicação podemos ler que
“para Weber, o desencantamento do mundo ocorre justamente em sociedades
profundamente religiosas, isto é, é um processo essencialmente religioso,
porquanto são as religiões éticas que operam a eliminação da magia como meio de
salvação” (1998, p.50). Quanto ao outro termo, explica Pierucci:
“secularização, por outro lado, implica
abandono, redução, subtração do status religioso; significa sortie de la
religion; é defecção, uma perda para a religião e emancipação em relação a ela”
(1998, p.50). O autor comenta ainda que “neste sentido, ela [a secularização] é
resultado, conseqüência, de certa maneira um ponto de chegada, uma conclusão
lógica do processo histórico-religioso de desencantamento do mundo” (1998, p.
51). O terceiro termo em questão é explicado por Pierucci desta forma: “Em
Weber, o processo de racionalização é mais amplo e mais abrangente que o
desencantamento do mundo e, neste sentido, o abarca; o desencantamento do
mundo, por sua vez, tem a duração histórica mais longa, mais extensa que a
secularização e, neste sentido, a compreende” (1998, p.51).
Para elucidar um pouco mais este tema, vamos aprofundar cada um destes
conceitos, recorrendo aos escritos do próprio Weber. Comecemos pelo conceito de “racionalização”.
Como já destacamos, este conceito é a categoria central de toda obra weberiana,
como ele mesmo deixa claro em sua “Introdução” aos Ensaios de Sociologia da
Religião”[9] na
qual o autor descreve as instituições racionalizadas da sociedade moderna: a
ciência, a arte, a arquitetura, as universidades, o Estado e, principalmente, o
capitalismo e na qual ele conclui sua reflexão dizendo:
Porque em todos
os casos citados, trata-se do “racionalismo” específico e peculiar da cultura
ocidental (...). Racionalizações têm existido em todas as culturas, nos mais
diversos setores e dos tipos mais diferentes. Para caracterizar sua diferença
do ponto de vista da história da cultura, deve-se ver primeiro em que esfera e
direção elas ocorreram. Por isso, surge novamente o problema de reconhecer a
peculiaridade específica do racionalismo ocidental e, dentro deste moderno
racionalismo ocidental, o de esclarecer a sua origem (Weber, 1996, p.11).
Portanto, é justamente no texto que abre os seus “Ensaios de Sociologia da Religião” que este
autor deixa muito claro qual é a intenção global de sua obra e o objetivo
fundamental de seus estudos de sociologia da religião. Trata-se de investigar
1) a peculiaridade específica do racionalismo ocidental e, ao mesmo tempo 2)
esclarecer a sua origem.
A origem do racionalismo ocidental, como sabemos, envolve um longo
processo de “desencantamento do mundo” (Entzauberung der Welt), segundo termo que vamos comentar
agora. Pierruci[10]
(1998, p.50) nos lembra que Weber foi buscar este termo em Schiller, no qual
aparecem os conceitos de des-divinização e ainda des-endeusamento. Sabemos que
o desencantamento do mundo é um processo que ocorre no interior das próprias
religiões e que seu principal traço é eliminação da magia como meio salvação,
como Weber deixa claro nesta passagem em que ele discute o caráter geral das
religiões asiáticas:
Para apreciar o
nível de racionalização que uma religião apresenta podemos usar dois critérios
básicos, que se inter-relacionam de várias maneiras. O primeiro é o grau em que
uma religião despojou-se da magia; o outro é o
grau de coerência sistemática que imprime à relação entre Deus e o mundo
e, em consonância com isso, à sua própria relação ética com o mundo (Weber,
p.1991, p.151).
Finalmente, o traço característico da sociedade moderna, ou seja, do
racionalismo ocidental, é a “secularização” da esfera política. Como já
destacou Pierucci, o termo não é usado por Weber de forma abundante.
Curiosamente, ele aparece oito vezes no capítulo de Economia e Sociedade
dedicado a sociologia do direito, outras duas vezes no mesmo texto, três vezes
na Ética protestante e duas vezes no texto as Seitas Protestantes e o Espírito
do Capitalismo. De acordo com a interpretação do sociólogo da USP (Universidade
de São Paulo), a secularização refere-se essencialmente a esfera
jurídico-política e implica a perda de influência da religião na esfera normativa
do Estado. Ou seja, no mundo moderno, as organizações políticas e sociais não
retiram mais sua fonte de legitimidade da esfera religiosa. Este é o conteúdo
essencial do processo de secularização.
Como podemos concluir, o traço principal da sociedade moderna, para
Weber, é o predomínio do racionalismo. Esta era a grande preocupação
intelectual do autor alemão, como podemos perceber na conferência que ele
pronunciou no ano de 1917 em Munique que recebeu o nome de “A ciência como
vocação”. Neste texto, este pensador procura refletir sobre as conseqüências
desta fato para a vida do homem.
Partindo da análise do conteúdo e do significado da ciência, ele conclui
que “o progresso científico é um fragmento, o mais importante indubitavelmente,
do processo de intelectualização a que estamos submetidos desde milênios”
(1967, p.30). Mas, o que significa, ao
final, este processo de “racionalização/intelectualização”? Conforme ele mesmo
explica:
O destino do
nosso tempo, que se caracteriza pela racionalização, pela intelectualização e,
sobretudo, pelo “desencantamento do mundo” levou os homens a banirem da vida
pública os valores supremos e mais sublimes (...). A quem não é capaz de suportar virilmente esse destino de nosso
época, só cabe dar o conselho seguinte: volta em silêncio, sem dar a teu gesto
a publicidade habitual dos renegados, com simplicidade e recolhimento, aos
braços abertos e cheios de misericórdia das velhas Igrejas. Elas não tornarão
penoso o teu retorno. De uma ou de outra maneira, quem retorna será
inevitavelmente compelido a fazer o sacrifício do intelecto (Weber, 1967,
p.30).
2.1.2. Características
Se o conceito de secularização nasceu com Max Weber, será somente nos
anos 60 que os estudiosos da religião vão adotar esta idéia como referência
fundamental (paradigma) para entender o lugar da religião na sociedade moderna.
De acordo com Olivier Tschannen, o paradigma da secularização implica em três
dimensões:
Avec la différenciation, la vie sociale se
sépare em deux sphéres distinctes: religieus et non religieuse. Avec la rationalisation, la sphére non
religieuse née de ce processus de différenciation se met à fonctionner selon
des critéres rationnels, non religieux. Avec la mondanisation, la sphére religiuse née du processus de différenciation
s’éloigne de plus en plus de ses intérêts propres pour se tourner vers des
intérêts typiques de la sphére non religieuse. (Tschannen, 1992, p.61-62).
A diferenciação funcional,
cujos enunciados clássicos nos foram legados por Spencer, Durkheim e Parsons,
significa o processo pelo qual diferentes esferas institucionais com suas
diferentes funções, nascem no seio da sociedade. Este processo implica ainda em diversos
correlatos. O primeiro é a autonomização da sociedade diante da religião. Isto
significa que a esfera religiosa perde o poder de controle sobre o restante da
esfera secular. O segundo correlato é a privatização, e que tem a ver com dois processos. Em
primeiro lugar, temos a retirada da religião da esfera pública para a esfera
privada. Em paralelo, a religião se torna cada vez mais subjetiva e cada
indivíduo constrói, tendencialmente, seu próprio cosmos religioso. A
generalização, terceiro correlato da diferenciação, significa que símbolos da
esfera religiosa são destituídos de significado religioso e passam a circular
em outras áreas da vida social. Cada um destes correlatos da diferenciação,
explica Tschannen, podem ser denominados ainda como formas de recomposição da
esfera religiosa na sociedade moderna. Os outros dois correlatos finais são a
pluralização (emergência de diferentes visões do mundo religiosas e não
religiosas) e ainda o declínio da prática e da afiliação religiosa.
Quanto a segunda dimensão do paradigma da secularização – a racionalização – ela pode ser definida
como “um processo bastante geral através do qual certos domínios da vida
social, até então organizados em bases religiosas, passam a funcionar segundo
critérios de racionalidade instrumental” (1992, p.67). Entre os chamados
correlatos desta dimensão temos a cientifização da visão de mundo dos
indivíduos e ainda a sociologização, que significa a idéia de que a sociedade
não é mais guiada pela tradição ou pelo destino e sim pela própria ciência. Os
outros dois elementos correlatos são alvo de polêmicas e por isso são chamados
por Tschannen de “flutuantes”. Trata-se do processo de declínio da visão
religiosa do mundo e ainda da própria incredulidade (perda de crenças
religiosas).
O terceiro elemento fundamental da secularização – a mundanização –significa que a sociedade
desloca suas preocupações da esfera sobrenatural para os interesses mundanos.
Do ponto de vista cultural, temos a substituição de uma ética religiosa por uma
ética mundana, fundada em elementos racionais e seculares.
É a partir destas três dimensões que podemos localizar os principais
autores que, a partir dos anos 60, podem ser listados dentro do paradigma da
secularização e que inclui, entre seus nomes mais importantes, autores célebres
Thomas Luckhmann, Peter Berger, Bryan Wilson, David Martin, Richard Fenn, Karel
Dobbelaere, Talcott Parsons, Robert Bellah, Andrew Greeley, Phlipo Hammond e
Jeffrey Haddens, Rodney Stark e William Bainbridge (teoria dos novos movimentos
religiosos) e outros mais.
A análise efetuada por Olivier Tschannen nos ajuda a entender dois
elementos centrais do debate em torno da secularização. Em primeiro lugar, ele
é cuidadoso em sua análise histórica, mostrando que a teoria da secularização
não pode ser atribuída a Max Weber com a dimensão que ela adquiriu nos atuais
debates da sociologia da religião. E, em segundo lugar, longe de se fixar em
apenas um aspecto isolado deste processo, as reflexões deste autor nos permitem
entender a secularização como um processo multidimensional e complexo no qual
vários elementos interagem entre si
2.2. O debate brasileiro: volta do
sagrado x secularização
Neste tópico apresentamos uma visão panorâmica das principais temáticas
e vertentes de estudo das ciências sociais da religião no Brasil. Retomando alguns balanços bibliográficos,
desejamos demonstrar de que forma estes estudos têm se posicionado em torno do
paradigma da secularização, particularmente das idéias de Max Weber[11].
Dois trabalhos irão nos guiar neste caminho. Trata-se dos balanços
bibliográficos realizados por Paula
Monteiro e Antonio Flávio Pierucci. [12]
Privilegiando a literatura especializada produzida nos anos 80 e 90,
Paula Monteiro (1999) apresenta como chave de leitura de seu texto a seguinte
hipótese: “apesar da diversidade religiosa brasileira, a literatura privilegiou
basicamente o estudo do catolicismo e das grandes religiões afro-brasileiras.
Apenas nesta última década o protestantismo ganha legitimidade acadêmica”
(1999, p. 328).
Do ponto de vista analítico, Monteiro reconhece ainda que as duas
abordagens disciplinares predominantes no estudo das religiões são a sociologia
e a antropologia. No âmbito da sociologia, as teorias marxistas têm
privilegiado o estudo do catolicismo e de suas relações com o Estado e as
teorias weberianas o estudo do protestantismo (e do neo/pentecostalismo). Já no
âmbito da antropologia, o tema fundamental são as religiões afro-brasileiras,
especialmente sob a influência de Durkheim e de Roger Bastide. Portanto, é em torno destes três eixos analíticos
que a autora organiza sua apreciação dos estudos sociológicos da religião no
Brasil. Os principais pontos da análise de Paula Monteiro podem ser resumidos
no quadro que segue:
QUADRO
01 – Paula Monteiro: sociologia da religião no Brasil
|
|||
Enfoque disciplinar
|
Teorias de análise
|
Temas de Pesquisa
|
Enfoque Político
|
Sociologia
|
Marx
|
Catolicismo
|
Estado
|
Weber/Camargo
|
Protestantismo
|
Secularização
|
|
Antropologia
|
Durkheim
Roger Bastide
|
Umbanda
Candomblé
|
Nação
|
A segunda grande avaliação sobre
a literatura brasileira de sociologia religiosa foi produzida por Antônio
Flávio Pierucci (1999), abordando a produção posterior a 1970. Intitulado
“sociologia da religião – uma área impuramente acadêmica”, o autor sustenta
como tese básica a seguinte afirmação: “as ciências sociais da religião no
Brasil nunca foram, nem jamais chegaram a ser, uma área puramente acadêmica”
(1999, p. 245). De acordo com a tese de Pierucci, isto se deve ao fato de que a
pesquisa social sobre a religião no Brasil é realizada tanto por acadêmicos
quanto por religiosos. Assim, os estudos sócio-antropológicos sobre religião no Brasil seriam constituídos
de três grupos fundamentais:
a) religiosos
praticantes, que praticam ciência social de alto nível;
b) religiosos
praticantes, que realizam o estudo da religião de forma acrítica e, muitas
vezes, com intenções apologéticas;
c) pesquisadores
puramente acadêmicos, que buscam entender cientificamente a religião.
Ao final de seu texto, Pierucci insiste nos riscos de “jogo duplo”
praticado por diversos pesquisadores sociais da religião no Brasil, chamando a
atenção para dois fenômenos: 1) muitos dos pesquisadores da religião hoje no
Brasil professam ou praticam crenças religiosas; 2) parte significativa do que
se produz em sociologia da religião no Brasil, desde os anos 70, faz o “elogio
da religião” e aplaude com incontida euforia o “retorno do sagrado”[13].
Como conclusão final, arremata, “ a sociologia da religião só é possível porque
tem na crítica moderna da religião sua condição pós-tradicional de
possibilidade enquanto ciência moderna, enquanto ciência científica” (1999, p.
278).[14]
Além
da forte influência weberiana, o que estes balanços de bibliografia apontam com
clareza é que os estudos sobre religião realizados no Brasil se repartem em
duas posturas teóricas diferenciadas: de um lado temos os defensores da “volta
do sagrado” e de outros os defensores da
“secularização”.
A
teoria da “retorno do sagrado” parte de
duas premissas fundamentais, que podem ser apresentadas em forma de teses:
a) Tese 01: o campo
religioso brasileiro destaca-se pela sua diversificação e pela visibilidade do
fenômeno religioso na sociedade,
b) Tese 02: este processo demonstra que os pressupostos
do paradigma da secularização inspirados em Max Weber (ou outros autores) estão
equivocados.
Vejamos alguns exemplos relevantes desta postura teórica, começando pelo
texto seminal de Rubem Alves (1978), aliás, intitulado justamente de “A volta
do sagrado”. No balanço que faz da
sociologia da religião no Brasil, este autor constata que esta área de estudos
sempre ocupou uma posição marginal nos estudos da ciência social brasileira, ao
contrário da centralidade que possui nos clássicos da sociologia (Durkheim,
Weber e Marx). Rubem Alves vai então em
busca dos fatores sociais e ideológicos deste sub-desenvolvimento temático. O
principal elemento que explicaria a marginalidade dos estudos da religião no
Brasil seria de caráter ideológico. Trata-se do fato de que a inteligência
brasileira está distante das preocupações populares, pois pertence às elites
econômicas e políticas. Para esta inteligência, a religiosidade popular e todo
o conjunto da cultura popular era algo que devia ser superado. Mas, para Rubem
Alves, acontecia então um processo de mudança. O crescimento dos estudos
dedicados à religião demonstrava que estava acontecendo uma transformação
ideológica profunda, que “implica uma crítica ao ideal de modernização e
secularização e na descoberta da contribuição efetiva que os oprimidos (...)
podem e devem trazer à política” (1978, p.118).
Outro
autor que sustenta tese semelhante é Lísias Negrão (1997). Diz ele que a sociologia brasileira incorporou de forma
acrítica conceitos e interpretações moldadas com base em outras realidades
sociais. Entre estas impropriedades intelectuais, o autor menciona o uso do
conceito de “campo religioso” de Pierre Bourdieu, a idéia de pluralismo
mercadológico de Peter Berger, a idéia de privatização do sagrado e,
especialmente, o conceito weberiano de “desencantamento do mundo”. Segundo
Negrão, “além de boa parte dos sociólogos interpretarem-no, ao meu ver
equivocadamente, apenas como o avanço da racionalidade científica no mundo
moderno, parece-me haver outra inadequação histórica em sua aplicação à
religiosidade brasileira. Esquecem-se eles de que os conceitos weberianos,
embora ideais, são historicamente construídos” (1997, p.67). A partir destas premissas, sustenta-se então
que o processo de industrialização e urbanização teria conduzido a sociedade
brasileira ao processo de secularização, embora atualmente estejamos assistindo
a uma “vingança de Deus”. Ora, de acordo com a avaliação do pesquisador, a
sociedade brasileira não foi reencantada pelos simples fato de nunca ter estado
desencantada. Para ele, “a maior parte da população brasileira viveu a
modernização da sociedade sem secularizar sua visão de mundo “ (1997, p.67).
Já para José Bittencourt Filho (2002), que realiza suas análises com
base nas teorias da
pós-modernidade, seria mais útil falar
em “pós-secularização”. Na sua visão, a hipótese da secularização deve ser
revista, embora não seja apropriado falar em retorno do sagrado. Retomando as
idéias de Guizzardi e Stella, fala-se então em “pós-secularização”. Estes autores, segundo Bittencourt, “
concluem que a secularização impôs-se efetivamente, mas vem sendo suplantada por
uma reestruturação interna das culturas religiosas tradicionais, que passaram a
privilegiar a solução de problemas individuais e coletivos imediatos” (2002,
p.84). Neste quadro interpretativo, este
estudioso considera tanto a hipótese da secularização pura e simples quanto a hipótese do retorno do sagrado como
equívocos.
Qual
seria então a tese correta para entender os processos religiosos
contemporâneos? Segundo Bittencour Filho, a transição da modernidade para a
pós-modernidade ensejou um processo de adaptação e não de desaparecimento das
religiões. A teoria da secularização teria acertado em identificar a crise das
grandes instituições religiosas, mas teria errado ao prognosticar seu
desaparecimento e sua substituição por visões humanistas. No quadro da
pós-modernidade estaríamos vivenciando então uma pós-secularização, entendida
como um tipo de religiosidade voltada para a satisfação das demandas imediatas
dos indivíduos, sejam elas de caráter material ou mesmo espiritual: “em face de
tudo isso só restou a alternativa pós-moderna e pós-cristã, isto é, apostar no
mosaico de problemas que povoam a existência de nossos coetâneos, para quem a
solução de tais problemas reside na manipulação pura e simples das forças
divinas e/ou sobrenaturais, segundo fórmulas altamente ecléticas, para não
dizer sincréticas” (2002, p. 90).
Todavia,
a tese do “retorno do sagrado” é fortemente contestada por autores que partem
de uma análise cuidadosa das obras de Max Weber
para mostrar que a pluralidade e dinamicidade do campo religioso
brasileiro não são sinais de “retorno do sagrado”, mas justamente o contrário,
ou seja, indícios da secularização. Esta
abordagem também poderia ser sintetizada na forma de duas teses que são:
a) Tese 01: as
diversas religiões no Brasil (em maior ou menor grau), vem passando por um
processo de recuperação ou acentuação de seus aspectos mágicos (tese da
re-magização);
b) Tese 02: este
processo não representa uma “volta do sagrado” mas, pelo contrário, revela que
o Brasil vem acentuando o processo de secularização (tese da secularização).
A tese do “retorno da magia” pode ser exemplificada nas formulações de
Reginaldo Prandi (1996b) Este autor não nega a secularização operada pela
modernidade, embora constate o fato que as suas promessas não foram totalmente
cumpridas. Todavia, assevera ele, “o desencantamento significa o refluxo da
magia, com o que a própria religião estava bastante de acordo, mas hoje, o que
as novas propostas religiosas fazem e professam significa voltar atrás,
recuperando a magia com muito vigor “ (1996b, p. 83). Como explicar, então, o paradoxo da
re-encantamento das religiões em um mundo secularizado? De acordo com a
explicação de Prandi, para entender esta aparente contradição é preciso levar
em consideração o projeto de construção da modernidade no Brasil que nos legou
uma sociedade pós-ética (a das classes privilegiadas, onde reina a lógica do vale tudo) e a
sociedade pré-ética (das classes populares, onde reina a lógica do salve-se
quem puder).
É
neste contexto social que Prandi vai situando os diversos grupos religiosos
brasileiros. Em primeiro lugar estaria o declínio do catolicismo tradicional, dado que este “foi
se transformando numa religião cada vez menos importante como fonte de valor e
de norma, sem que as interpretações não religiosas tenham ocupado este vazio,
na medida em que as instituições laicas não foram capazes, ou não puderam, ou
foram impedidas de fornecer códigos de referência” (1996b, p. 84). Já a proposta de renovação do catolicismo a
partir das CEBs com sua proposta de transformação social e engajamento no mundo
a partir da religiosidade, esbarrou no predomínio do individualismo e na
demanda dirigida a religião por sentido e por solução para os problemas
privados e não para os problemas públicos. Dado este cenário, crescem o
pentecostalismo, as religiões afro-brasileiras e a proposta de renovação do
catolicismo a partir da RCC.
Em
suma, o argumento de Prandi reside na
tese de que, apesar da modernização e secularização das instituições sociais
brasileiras, as desigualdades sociais fizeram com que as religiões que
revalorizam a magia (como o pentecostalismo, as religiões afro-brasileiras e o
catolicismo carismático) tivessem um novo incremento. Em outros termos, o
re-encantamento da religião no mundo deve-se as falhas do próprio processo de
modernização. Como tal, não o contradiz!
Agora, vejamos a tese da secularização, defendida por Antonio Flávio
Pierucci (1997b) Em seus textos, este
autor se pronuncia sobre a abundante literatura nacional e internacional que
proclama a plenos pulmões a revanche de Deus ou a volta do sagrado. Segundo
estas análises, as teorias da secularização e do desencantamento de corte
weberiano estariam superadas. De forma
geral, tais estudos tomam o crescimento e diversidade de novos movimentos
religiosos como suposta prova do declínio da idéia de secularização e
principalmente do vigor da religião. De fato, constata Pierucci, a religião não
desapareceu ou foi eliminada na modernidade, mas não se trata disto. A secularização
não significa seu desaparecimento, mas sim o seu declínio como o elemento
articulador da vida social e cultural. Na modernidade, a religião é eliminada do espaço público e se
confina apenas no espaço pessoal e privado. Este seria o significado da secularização.
De acordo com Pierucci, a secularização, longe de ser negada pelo crescimento e
diversidade das religiões contemporâneas, torna-se justamente a causa
explicativa desta mudança no campo religioso[15].
O que
esta rápida resenha das principais posições teóricas da sociologia da religião
no Brasil deixa claro é que, em geral,
elas estão de acordo quanto ao diagnóstico do que ocorre no campo
religioso brasileiro: incremento do pluralismo institucional e acentuação do
subjetivismo religioso. Ocorre que elas
divergem no significado dado a estes eventos. Nesta polêmica, ambas as posições
recorrem a Max Weber. No caso da teoria do retorno do sagrado, para negá-lo; no
caso da teoria da secularização, para confirmá-lo.
Nossa
proposição consiste em afirmar que para superar os problemas da discussão
brasileira é preciso transcender a polarização entre a abordagem da “volta do
sagrado” e a abordagem da “secularização”; pois cada uma delas está permeada
por diferentes pressupostos valorativos, a saber: a defesa da religião no caso
da primeira e a defesa do racionalismo no caso da segunda. É neste sentido que nos propomos aqui uma
“mudança de paradigma” que nos conduz ao encontro da “teoria da modernidade
religiosa”.
3.
Teoria da
modernidade religiosa
Esta abordagem, desenvolvida na França
por Daniéle Hervieu-Léger (com a colaboração de Françoise Champion)
procura superar o debate centrado na polarização “retorno do sagrado” x
“secularização” com base na noção de “recomposição” da religião na sociedade
moderna. Portanto, esta teoria supera e integra ao mesmo tempo as abordagens
anteriores, vistas como excludentes. De um lado não se nega a modernidade e suas características
seculares, como também não se nega a presença e a importância das religiões e
religiosidades no contexto moderno. Daí o nome de “modernidade” (1o
aspecto) “religiosa” (2a
aspecto) para esta abordagem.
A idéia de modernidade religiosa não é tanto uma “teoria”, no sentido de
um conjunto de proposições sistemáticas e abrangentes sobre determinado
fenômeno. Trata-se antes de uma “abordagem”, no sentido de uma orientação geral
que serve de guia para a compreensão dos dados de fato. Para reconstruirmos as
características essenciais da abordagem de Hervieu-Léger, vamos examinar as
diversas obras da autora, tentando demonstrar como, a partir desta
orientação, ela vai,
paulatinamente, acrescentando novos
elementos para a compreensão da religião
na sociedade contemporânea.
3.1. Abordagem
As
primeiras proposições de Hervieu-Léger sobre este assunto foram desenvolvidas
em sua obra seminal intitulada “Vers un neauvou christianisme” (1986). Trata-se
de uma obra bastante ampla e globalizante, que analisando a situação do
catolicismo e do protestantismo nos dias atuais busca realizar uma verdadeira
“sociologia do cristianismo ocidental”.
Este texto pode ser considerado como uma espécie de “programa fundador” dos estudos desta
pesquisadora, na medida em que desde sua introdução ela já manifesta a intenção
de propor uma nova forma de compreender a questão da religião no mundo
contemporâneo. Para fugir ao dilema entre a
idéia de retorno do sagrado, por um lado, e a idéia de secularização por outro, ela
afirma que a questão central da sociologia contemporânea da religião deve
deslocar-se para entender “ a emergência de um tipo de relação à religião que
não se inscreve na recusa pura e simples da modernidade, nem uma atestação pura
e simples dos valores do mundo moderno” (1986, p.16). O que importa, portanto,
é explicar “as produções religiosas
desta modernidade no seu estágio atual e da relação do cristianismo com estas
produções” (1986, p.17). Para superar
esta dicotomia e este antagonismo entre estas duas abordagens, Hervieu-Léger
parte da seguinte hipótese:
Le processus historique de la modernité
dissout la religion, dans le temps même ou l´utopie de la modernité, moteur de
ce precessus, reconstitue en permanence les conditions d´une pensée qui lit la distance presente entre la realité
vécue et l´horizon utopique comme l´expression et le résultat de la tension
entre deux mondes antagoniques: celui des déterminations quotidiennes, d´une
part, celui des significations (ou se réalisent l´ordre et le sens des choses),
d´autre part (Hervieu-Léger, 1986, p.224).
Em
outros termos, o paradoxo da modernidade é que, se por um lado ela parece levar
à abolição da religião, por outro, ela cria ao mesmo tempo uma utopia que
possui a mesma estrutura do pensamento religioso. Nesta perspectiva, os novos
movimentos religiosos que vemos hoje manifestam que a secularização não é o
desaparecimento da religião confrontada com a razão. Ao contrário:“ c´est le
processus de réorganisation permanente du travail de la religion dans une
societé structurellement impuissante á combler les attentes qu´il faut susciter
pour exister comme telle” (1986, p. 227). A análise deste processo de
re-organização constitui a grande tarefa de uma “ sociologia do crer” que ainda
está por fazer, afirma a autora. Mas, embora ao longo do seu livro
Hervieu-Léger já aponte para algumas características do que ela chama de
“cristianismo pós-moderno” (a revitalização do carisma, a religião das
comunidades emocionais[16] e
o ecumenismo), será somente nas suas obras posteriores que a busca do
entendimento da produção religiosa da modernidade começa a ser delineada.
3.2.
Conceito de
religião
Para realizar esta tarefa, Léger resolve
enfrentar uma das problemáticas centrais da sociologia da religião: a própria
definição do fenômeno religioso (La religion pour memoire, 1993). Nesta obra é
o próprio conceito de religião que é problematizado, a partir da constatação da
perda de nitidez que separava rigidamente as esferas do sagrado e do profano. O
que é preciso explicar então é a expansão de uma religiosidade
invisível ou difusa, que faz transbordar os limites do religioso, levando a
autora a sustentar a tese da “desregulação institucional” da religião.
Do ponto de vista sistemático, é possível
reconhecer na sociologia contemporânea basicamente duas formas de definir a
religião: uma perspectiva inclusivista e outra exclusivista, ou seja, uma
perspectiva ampla e outra restrita. Na primeira visão, a religião é um sistema
de significação, cujo papel funcional pode se estender para além das
instituições religiosas (religião invisível). Na segunda, a religião está
circunscrita às instituições propriamente ditas. Ambas são limitadas, pois a
primeira se preocupa apenas em mostrar a expansão das religiões para outras
esferas da vida social, enquanto a segunda fica presa a uma definição histórica
das religiões. De qualquer forma, Hervieu-Léger afirma que as duas dimensões
propostas por estas abordagens – o lado institucional e não institucional –
devem ser levadas em conta em uma definição sociológica do fenômeno
religioso. Já a tentativa de retomada da
categoria de sagrado como fundamento da religião esbarra em dois problemas: 1)
ela toma as religiões históricas como modelo e, 2) enquanto fonte de uma experiência emocional
fundadora ela não é exclusiva da religião.
Com base nesta revisão histórica e
teórica, Hervieu-Léger procura então abrir caminho para uma nova definição do
fenômeno religioso que não coloca ênfase sobre o conteúdo das crenças, mas
acentua - acima de tudo - as mutações na estrutura do crer, que ela procura
definir da seguinte forma:
l’emsemble de convictions,
individuelles et collectives, qui ne relèvent pas du domaine de vérification,
de l’expérimentation, et, plus largement, des modes de reconaissance et de
controle que caractérisent le savoir, mais qui trouvent leur raison d’être dans
le fait qu’elles donnent sens e cohérence à l’expérience subjective de ceux qui
les tiennent (Hervieu-Léger, 1993, p.105).
A produção do crer, insiste a
pesquisadora, não responde primariamente à questão da produção do sentido. Não
se trata tanto de pensar o lugar dos atores sociais em um mundo entendido como
reflexo de uma ordem natural. Ao contrário, trata-se de responder à demanda por
segurança, ou seja, situar-se em um espaço social aberto, no qual a mudança e a
inovação são colocadas como normas. Os modos de crer seriam uma forma de
resolver o constante problema da incerteza, própria da modernidade. Esta,
embora tenha debilitado às religiões tradicionais, não cancelou as formas de
crer, que são cada vez mais individuais, subjetivas, dispersas e feitas de
diversas combinações, ou, em uma única
palavra, fluidas. Desta forma, Hervieu-Léger logra “dessencializar” ou mesmo
“desubstancializar” o conceito de religião. Apenas um elemento serve ainda para
especificar a crença religiosa: o tipo de legitimação dado ao ato de crer, que,
na hipótese da autora, invoca sempre a autoridade de uma tradição. Assim,
chega-se a seguinte definição de religião: ”Une religion est un dispositif
idéologique, pratique et symbolique par lequel est constituée, entretenue,
dévelopée et controlée la conscience (individuelle et collective) de
l’appartenance à une lignée croyante particuliére” (1993, p.119).
Hervieu-Léger
parte do princípio de que com a crise das “metanarrativas” (evolução,
progresso, revolução, etc.), a sociedade moderna encontra-se definitivamente em
uma realidade pós-tradicional. Embora reconheça as contribuições dos
pós-modernos no sentido de detectar este fenômeno, a autora prefere recorrer a noção de “alta
modernidade” de Giddens para afirmar que, neste cenário de crise, incerteza e
risco, a religião, como forma de crer que busca re-inventar memórias coletivas,
acaba sendo uma forma de situar-se na modernidade. O que temos, portanto, é uma
religião pós-tradicional, que re-inventando tradições espraia o sentido do
religioso em vários espaços da vida social, ou mesmo dá origem – às vezes – a
grupos religiosos. Neste cenário, afirma a autora, a discussão sobre a
secularização está ultrapassada. O mais importante para a sociologia da
religião seria explicar a
“des-institucionalização” radical do religioso em detrimento das religiões
históricas. Aliás, o maior desafio das grandes religiões não está em situar-se
em uma realidade secularizada, mas em como enfrentar a dinâmica de circulação
dos signos religiosos. De que forma elas podem opor uma memória verdadeira às
bricolagens subjetivas dos indivíduos? A desregulação institucional do
religioso está diretamente ligada a subjetivação das práticas sociais na
alta-modernidade. Naturalmente, as
religiões institucionais buscam reagir a este processo, seja apelando para
formas emocionais de prática religiosa (sem referência a uma tradição), seja
através de um processo de racionalização cultural, na qual as diferentes
expressões religiosas são apresentadas
como valorização da diversidade e pluralidade.
3.3.
Religiosidade
contemporânea
Após este trabalho de reconstrução
teórica que desemboca em uma nova definição do fenômeno religioso, será na obra
“Le pèlerin et le converti” (1999), que Danièle Hervieu-Léger vai nos oferecer
uma visão panorâmica da paisagem religiosa moderna, tomando como ponto de
partida o cenário francês, e duas figuras exemplares da religiosidade
contemporânea: o peregrino e o convertido. Nesta obra, o trabalho da autora se
desloca do plano analítico para o plano empírico, visando discutir
especialmente três conjuntos de questões: 1) o individualismo religioso
contemporâneo, 2) as novas formas de comunalização religiosa e, 3) as relações entre religião e laicidade (no
caso da República francesa).
De
acordo com a autora, o que caracteriza a nossa época não é tanto à indiferença
religiosa ou a descrença; mas, acima de
tudo, o fato de que as crenças religiosas escapam ao controle das grandes
igrejas e das instituições religiosas.
Por isso, a grande característica da modernidade religiosa é a tendência
geral para a individualização e a subjetivação da vida religiosa. O aspecto
decisivo desta des-regulação é sobretudo
a liberdade dos indivíduos para “bricolar” seu próprio sistema de crenças, tomando
emprestados diversos elementos das religiões institucionalizadas. Estas
bricolagens se diferenciam segundo as classes, o sexo, as gerações e outros
fatores sociais. Há uma tendência a simbolização nas camadas superiores e uma
tendência de substancialização nas camadas populares (como mostra o caso da
crença no demônio). Mas, isto não significa que os indivíduos não tenham
qualquer tipo de identificação confessional. O que ocorre é que a pertença
institucional não determina o conteúdo das crenças. Identidade confessional e
identidade de crenças são hoje coisas distintas. Sob o aspecto político, este individualismo
religioso tem uma dupla face. Por um lado, ele leva a um ecumenismo de valores,
na medida em que respeita todas as religiões. Por outro lado, estas novas
combinações religiosas podem servir também para a reafirmação de identidades
coletivas diante do cenário de atomização e fragmentação da alta modernidade.
Hoje,
a identidade religiosa não é mais herdada e sim escolhida livremente pelos
indivíduos. Por isso é preciso explicar como se dá de forma individual a
construção de uma identidade de crença.
Para responder a esta pergunta chave da sociologia da modernidade
religiosa, Hervieu-Léger nos propõe como hipótese a tese de que os processos de
identificação religiosa de nossas sociedades modernas passam pela livre
combinação de quatro dimensões típicas de identificação, que são:
1)
dimensão
comunitária:
conjunto dos marcos sociais e simbólicos que definem as fronteiras do grupo
religioso e permitem distinguir aqueles que são membros e aqueles que não o
são;
2)
dimensão ética: aceitação de
determinados valores ligados a mensagem religiosa de uma determinada tradição
religiosa. Esses valores podem ser apropriados sem necessariamente haver adesão comunitária;
3)
dimensão cultural: conjunto de
elementos cognitivos, simbólicos e práticos que constituem o patrimônio de uma
tradição particular, como livros, práticas, códigos rituais, histórias,
crenças, arte, etc.;
4)
dimensão emocional: é a experiência
afetiva associada à identificação, ou ainda uma experiência elementar de
comunhão coletiva, que pode levar ou não a adesão comunitária.
Cada uma destas dimensões pode servir de base para a construção e
reconstrução de uma determinada identidade religiosa. Para ilustrar esta
hipótese, a autora toma como exemplo o caso dos jovens cristãos da Europa.
Combinando duas das dimensões acima apontadas, podemos encontrar seis tipos
ideais de identidade religiosa cristã, a saber:
1. Cristianismo afetivo: combina a intensificação emocional
com o sentimento de pertença comunitária. É o caso dos jovens que participam
das jornadas mundiais do Papa com a juventude e que, após, passam a aderir à
comunidade religiosa.
2. Cristianismo patrimonial:
combina a dimensão cultural e a dimensão comunitária. A identidade
religiosa é dada pela reafirmação da tradição, como é o caso das correntes
neo-tradicionalistas da França.
3. Cristianismo humanitário:
combina a dimensão emocional e a dimensão ética. Trata-se de pessoas
sensíveis às injustiças do mundo e que procuram engajar-se em causas
humanitárias, sem privilegiar o conteúdo político de sua ação.
4. Cristianismo político: combina a dimensão comunitária e a
dimensão ética. Trata-se de jovens que procuram engajar-se politicamente para
promover os valores cristãos na sociedade. É o caso da Juventude Operária
católica, por exemplo.
5. Cristianismo humanista: é o reconhecimento de um enraizamento
cultural, combinado com a aceitação de um conjunto de valores morais próprios
do cristianismo. Trata-se de uma atitude predominante entre os intelectuais.
6. Cristianismo estético: combina a dimensão emocional e a
dimensão cultural. É o caso dos jovens que freqüentam os santuários clássicos
da Europa.
É
importante lembrar que estas diferentes identidade religiosas não devem ser
tomadas em sentido absoluto. São antes de tudo trajetórias religiosas, sempre
fluidas e sempre abertas a novas composições e recomposições.
Durante
sua história, a sociologia da religião tomou como exemplar para seus estudos a
figura do “praticante”, ou seja, aquele que manifesta na sua vida ordinária o
liame que existe entre suas crenças e seu pertencimento religioso. Mas, para
captar as nuançes da religiosidade moderna, sempre em movimento, Hervieu-Léger
se propõe partir de outros tipos sociais próprios desta modernidade: o peregrino
e o convertido. O peregrino emerge como uma figura típica do religioso em
movimento em um duplo sentido. Ele mostra, primeiramente, a fluidez dos
conteúdos de crença que ele mesmo constrói e, por outro lado, a incerteza e
mobilidade das associações comunitárias possíveis. A outra figura que nos revela os traços
fundamentais das identidades religiosas em movimento da modernidade é a figura
do “convertido”. Em uma sociedade onde a religião tornou-se uma escolha privada,
a conversão toma o sentido de uma escolha individual na qual se exprime no mais
alto grau a autonomia do sujeito crente. Entre as figuras dos convertidos,
podemos reconhecer três modalidades principais: 1) O indivíduo que muda de
religião, seja aquele que rejeita uma identidade religiosa herdada e assumida
para assumir uma outra, seja aquele que abandona uma identidade religiosa
imposta e não assumida para assumir uma nova fé; 2) O indivíduo sem religião
que resolve adotar uma determinada identidade religiosa e; 3) O terceiro tipo é
a figura dos “re-afiliados” ou dos convertidos do interior, ou seja, aqueles
que passam a viver de fato uma identidade religiosa que até então era apenas
formal.
Quais são as relações entre o individualismo religioso e o
individualismo moderno? Seria um erro considerar o individualismo religioso
como precursor do individualismo moderno ou, ao contrário, considerar o
individualismo religioso como fruto do individualismo moderno. O primeiro se
separa do segundo na medida em que valoriza o sujeito apenas como caminho para
chegar a Deus e, em segundo lugar, ele desvaloriza absolutamente as realidades
intra-mundanas. Diante desta constatação, a autora conclui que o que
caracteriza o individualismo religioso é a sua absorção no individualismo
moderno. Em outros termos, a religiosidade contemporânea não só afirma o valor
do sujeito de uma parte, mas também a valorização do mundo de outra parte.
O segundo problema fundamental desta obra é a discussão da relação entre
o individualismo religioso e a formação de comunidades religiosas.
Diante deste extremo individualismo religioso moderno, ainda são possíveis
formas de agrupamento religioso? Eles ainda são necessários? Apesar de
paradoxal, quanto mais individuais e compostas (bricolagem) são as crenças dos
indivíduos, mais eles necessitam compartilhar suas experiências espirituais com
outros indivíduos. Neste sentido, a autora distingue quatro tipos de regimes de
validação de crenças, com suas instâncias e critérios:
1) autovalidação: o próprio indivíduo e sua experiência são a
instância e o critério de validação;
2) validação mútua: a instância de validação é o outro e o critério de
validação é a autenticidade. Portanto, este regime de validação opera de forma
intersubjetiva;
3) validação
comunitária: a instância de validação é o grupo
e o critério de validação é a coerência. Ou seja, o que importa é o engajamento
de cada um em tarefas militantes que confirmam sua crença;
4) validação
institucional: a instância
de validação é a instituição religiosa (sacerdotes, gurus, etc.) e o critério
de validação é a conformidade com seus ensinamentos.
O que podemos constatar hoje é que os regimes de validação predominantes
na sociedade atual são a auto-validação e a validação mútua. O movimento de
desinstitucionalização do religioso no mundo moderno, portanto, pode conduzir a
dois movimentos opostos. Por um lado, uma relativização das normas, crenças e
práticas religiosas fixadas pelas instituições religiosas, em nome da busca
individual da verdade e do sentido da vida. A única forma de societarização
desta forma de religiosidade é a validação mútua das crenças, ou seja, a troca
comum de experiências. Por outro lado, existem também a formação de pequenos
grupos de verdade absoluta (as chamadas seitas[17]),
ao qual corresponde a validação comunitária da crença.
Diante deste quadro, a autora propõe-se a repensar as relações entre o
Estado e a esfera religiosa, propondo um novo modelo de laicidade: a laicidade
mediadora. Assim, em vez de um Estado neutro e indiferente as religiões, ela
sugere um Estado cooperativo, que promova em união com as diversas famílias
espirituais a produção de referências éticas, a preservação da memória e a
construção do tecido social. Por outro lado, as próprias religiões devem
promover entre si o diálogo cooperativo e ecumênico. Quanto ao Estado, não lhe
cabe negar o estatuto religioso a qualquer agrupamento social que o
reivindique, mas a invocação da liberdade religiosa deve sempre vir acompanhada
da adesão aos direitos humanos e valores democráticos. De qualquer forma, o
Estado deve começar a reconhecer a contribuição que as diferentes famílias
religiosas em diálogo podem oferecer para a vida pública.
3.4.
Reflexões finais
Para prosseguir em nossa investigação, vamos dedicar as linha finais
deste capítulo a desenvolver duas questões. Em primeiro lugar, procura-se
mostrar de que forma a teoria da modernidade religiosa pode nos oferecer uma
alternativa para superar os impasses teóricos da sociologia da religião no
Brasil. Em segundo lugar, procuramos mostrar as conexões entre a teoria da
“modernidade religiosa” e a teoria da “modernidade técnica”.
Olhando de forma retrospectiva a produção teórica de Hervieu-Léger,
podemos perceber como ela procura enfrentar a questão das produções religiosas
da modernidade em um duplo sentido: teórico e empírico. Do ponto de vista
teórico, ela rejeita as concepções substantivas do fenômeno religioso, para
concebê-lo como um modo de crer, ou seja, como um tipo de crença fundada no
apelo a uma tradição. Isto lhe permite entender a religião na sociedade moderna
para além dos seus aspectos institucionais. A desregulação do campo religioso
significa que a religiosidade contemporânea é essencialmente subjetiva. São os
próprios indivíduos que procuram moldar seu padrão de crenças e suas práticas
religiosas. Portanto, se podemos falar de secularização, esta não implica tanto
no desaparecimento ou no enfraquecimento da religião na sociedade moderna. A principal marca da religiosidade moderna é
a subjetivação da conduta religiosa.
Desta forma, a reflexão teórica de Léger
nos permite superar dois dos impasses da reflexão teórica da sociologia
das religiões no Brasil.
O primeiro é a sua excessiva fixação na oposição entre os defensores da secularização e os teóricos da
pós-secularização (retorno do sagrado). O que a teoria da modernidade religiosa
nos ensina é que não se trata nem de defender nem de negar a secularização.
Trata-se apenas de entender a produção religiosa levando em consideração o
próprio contexto da modernidade. A teoria da modernidade religiosa, portanto,
nos proporciona uma mudança de paradigma que nos permite ver as relações entre
religião e modernidade de um novo ângulo. Não mais destacando o declínio da
religião na realidade secular (secularização) e nem sugerindo o declínio da
realidade secular diante de uma suposta revanche das religiões (retorno do
sagrado). Portanto, para pensar a realidade religiosa do Brasil contemporâneo,
marcada pela pluralização de denominações religiosas e pelo subjetivismo
religioso, é preciso considerar como, a partir da modernização da sociedade
brasileira, opera-se também uma modernização no cenário religioso. Em outros
termos, é preciso verificar como se dá a produção religiosa dentro deste mesmo
contexto. Isto torna necessário também focar nossa atenção no processo de
“recomposição” do religioso diante de um cenário marcado pela desregulação
institucional do campo religioso. Esta é a marca característica da
religiosidade contemporânea. Esta é também a marca do cenário religioso no
Brasil. Nem seu declínio, nem sua re-afirmação. É de sua “recomposição” que
desejamos tratar.
A teoria da modernidade religiosa também nos ajuda a deslocar a
importância que o paradigma da secularização atribui ao problema da magia nas
religiões[18].
Este conceito é central neste paradigma, pois a secularização é entendida como
recuo da magia. É por isso que a sociologia da religião no Brasil acabou
privilegiando este conceito, seja para tomá-lo como indício de
pós-secularização, seja para confirmar a própria secularização. Não se trata
simplesmente de negar a presença e a importância de elementos mágicos no campo
religioso brasileiro. Mas, superando uma abordagem centrada no problema da
secularização, o problema da magia deixa de ser o elemento central para a
compreensão do cenário religioso brasileiro. Isto nos permite pensar as
características do campo religioso a partir de outros elementos.
Por isso, a partir da teoria da modernidade religiosa, abre-se o caminho
para colocar o conceito de “mística” como um dos eixos centrais para pensar a
realidade religiosa do Brasil. Tal fato é possível porque, como ainda desejamos
mostrar, existe uma íntima ligação entre os traços subjetivos do comportamento
religioso contemporâneo e a religiosidade mística. Em outros termos, a desregulação
institucional do campo religioso apontada por Hervieu-Léger abre caminho para
práticas religiosas subjetivas ou místicas, como ainda teremos ocasião de
demonstrar.
A segunda questão que devemos esclarecer melhor diz respeito as conexões
que podemos estabelecer entre a teoria da modernidade religiosa com a teoria da
modernidade técnica. Nesta pesquisa, a abordagem da modernidade técnica cumpre
o papel de nos fornecer uma “teoria social”, enquanto a abordagem da
modernidade religiosa nos fornece uma teoria do “lugar social” da religião na
modernidade. Ambos os esforços são necessários, pois não podemos prosseguir em
nossa investigação sem uma teoria para pensar o status da religião na vida
social moderna. Por outro lado, a discussão sobre religião e vida moderna tem
como pano de fundo necessário uma concepção de modernidade. Em outros
termos, a teoria da modernidade técnica
cumprirá uma função de “macro-teoria”, enquanto a teoria da modernidade
religiosa cumprirá a função de teoria de “médio-alcance”. A primeira nos
fornecerá uma concepção de modernidade e a segunda uma concepção do lugar da
religião no interior da modernidade.
Mas, qual é o elemento que torna ambas as teorias compatíveis entre si?
De que forma podemos estabelecer o acoplamento da teoria da modernidade
religiosa no interior da teoria da modernidade técnica?
Acontece que a teoria da modernidade técnica, ao partir do pressuposto
da contingência, não estabelece um vínculo de necessidade entre religião e
modernidade. Ou seja, a racionalidade contingente da técnica não determina de
forma necessária o destino da religião na vida social moderna. Se a relação
entre a modernidade e a religião é contingente, isto significa que a
modernidade técnica pode “acoplar-se” ou “moldar-se” a diferentes realidades
religiosas. A técnica moderna, como mostrou Brüseke, é “indiferente” aos
modelos políticos e culturais das diversas sociedades. Isto significa, por
outro lado, que também as religiões
podem “reagir” ou moldar-se e acoplar-se de forma diversas as condições da
técnica moderna. De qualquer forma, a ligação entre religião e modernidade é
sempre contingente, e não pode ser pensada de forma “apriori”, seja no sentido
da afirmação da modernidade por conta do
declínio da religião (secularização), seja no sentido da afirmação da
religião por conta da “crise” da modernidade (retorno do sagrado).
É neste contexto que emerge a teoria da modernidade religiosa. Esta
teoria cumpre o papel de nos explicar, a partir da observação empírica, de que
forma a ligação sempre contingente entre modernidade e religião pode ser
analisada concretamente no quadro da sociedade contemporânea. E, o que esta
teoria nos ajuda a mostrar é que, com o desenrolar da modernidade, as formas de
crer, longe de serem negadas pela modernidade, ou mesmo longe de negar a
própria modernidade, vivem um processo de “recomposição” que, a partir da
desregulação do campo religioso (subjetivação), apontam para novas tendências
na conduta religiosa dos indivíduos contemporâneos.
É a partir deste quadro teórico que busca-se entender o discurso místico
da teologia da libertação mostrando de que forma ele redefine as relações entre
catolicismo libertador e modernidade no Brasil. Neste caso, a teoria da
modernidade técnica nos servirá como referência para conceituar nossa concepção
de “modernidade social”, enquanto a teoria de Hervieu-Léger aponta para nossa
concepção de “modernidade religiosa”. Com base nestes pressupostos, examina-se,
no próximo capítulo, de que forma a teoria da modernidade religiosa nos ajuda a
compreender, sob um novo ângulo, as transformações do catolicismo no Brasil.
[1] Utilizamos-nos
da expressão “campo religioso” conforme a interpretação de Bourdieu (1974).
[2] Sobre
os protestantes históricos, veja-se o texto de Mendonça e Velasques Filho
(1990).
[3] Uma
análise crítica das terminologias e classificações sobre o protestantismo
brasileiro, pode ser encontrada no texto de Giumbelli (2001, p. 87-119). Para uma análise de cunho histórico, conferir
o trabalho de Mariano (1996).
[4] Para
um estudo das religiões afro-brasileiras conferir o clássico de Bastide (1972).
Consulte-se também Ortiz (1978) e Prandi (1996 a).
[5] Uma
análise crítica sobre a suposta “diversidade religiosa no Brasil” pode ser
encontrada em Pierucci (2002).
[6]
Avaliações do cenário religioso brasileiro a partir dos dados do último censo
podem ser encontradas também em Montero e Almeida (2000) e em Sanchis (1995a e
1997).
[7] Este
autor também discute o problema das relações entre liberdade religiosa e
secularização, vide-se Oro (2004, p. 317-336).
[8]
Veja-se, neste sentido, as proposições de (Colliot-Thellénè, 1995, p.61-81).
[9] Referimo-nos
aqui a “Introdução” (Vorbemerkung) que Weber escreveu aos “Ensaios reunidos de
sociologia da religião” e que, na edição
composta por Parsons aparece como sendo a introdução da Ética Protestante e o
Espírito do Capitalismo.
[10]
De acordo com um minucioso estudo efetuado por este autor (2003), o termo
desencantamento aparece dezessete vezes na obra de Max Weber.
[11]
Isto não quer dizer que o debate reduz-se a apenas estas duas posições. Outras
visões do cenário religioso brasileiro existem em abundância. A título de
exemplo, veja-se as chamadas “abordagens econômicas” do fenômeno religioso
(Frigerio, 2000, p. 125-144).
[12] Também
podem ser consultados balanços de literatura anteriores realizados por Alves
(1978), Zaluar (1983) e Fernandes (1984).
[13] Sobre
este mesmo assunto, ver ainda o texto de Pierucci “Interesses religiosos dos
sociólogos da religião” (1997a, p. 249-262).
[14] Para
uma crítica do texto de Pierucci veja-se o texto de Marcelo Camurça (2001b, p.
67-86).
[15]
Uma crítica da teoria da secularização, mas que não assume as premissas da
teoria do sagrado é o texto de Monteiro (2003).
[16] Para
uma análise mais aprofundada da autora
sobre a centralidade do aspecto emocional na religiosidade
contemporânea, conferir Hervieu-Léger (1989). Um artigo sobre este tema em
português também pode ser encontrado na Revista “Religião e Sociedade” (Hervieu-Léger,
1997).
[17] Para
uma discussão sobre o problema das seitas na França, veja-se a coletânea de
Champion e Cohen (1999). Uma análise comparativa do caso francês com o caso
brasileiro é realizada por Giumbelli (2002).
[18]
Para uma apresentação sobre o conceito de magia, veja-se o texto de Pierucci
(2001).
Método, clareza, lógica, ordem nas idéias, divisões e
subdivisões, tudo se vai dispondo de maneira extraordinária.
Os pensadores que antecederam o mestre trataram, de
maneira esparsa, aqui e ali, de grandes teses filosófico-teológicas, nunca,
porém, em conjunto, de maneira integral e panorâmica, como fez Tomás de
Aquino, na Suma Teológica.
Divide-se a Suma em
três partes maiores, cada parte se
resolve em questões, as questões em artigos.
A
primeira parte estuda Deus, o Anjo e o Homem; a segunda parte é consagrada à
moral; a terceira parte estuda a encarnação do verbo, os mistérios de suas
humilhações e vitórias. Interrompe-se a obra na altura em que seu autor
principia a explicar os Sacramentos.
Encerra a Suma 613
questões, 3.106 artigos e mais de 15.000 argumentos sobre pontos de moral e de
dogma, sempre seguidos de citações dos Santos Padres.
Salienta-se Santo Tomás no campo da lógica, da metafísica, da
antropologia, da gnoseologia, da cosmologia, da
ética, da teodicéia, da política, da filosofia e teológia.
Em lógica, Tomás
é um aristotélico, utilizando-se da parte formal do raciocínio estagirita; na metafísica, com maior amplitude do que o
mestre grego, Tomás revive as noções de atos e potência, expõe o problema das
categorias, detendo-se na substância e nos acidentes, discorre sobre as quatro
causas e faz a distinção fundamental entre ente e essência; na antropologia, explica a união entre alma
e corpo, a primeira, princípio imaterial que se une ao corpo, como a forma à
matéria, o ato à potência, formando um composto substancial — o homem, que,
quanto à vontade, é livre; na gnoseologia
ou teoria do conhecimento, Tomás
revive o princípio do nihil est in
intellectu quod prius non fuerit in sensibus, nada há no intelecto que não
tenha estado nos sentidos, básico para o seu sistema e interpretado de maneira
clara e precisa. No conhecimento, só existente mediante a relação entre sujeito cognoscente e objeto conhecido o primeiro procede a
uma assimilação vital do segundo. Há dois tipos de conhecimentos, o sensitivo e o intelectual. Por meio de ambos a alma entra em contato direto e
imediato com a realidade; na cosmologia, aceita
a doutrina dos quatro elementos, da incorruptibilidade dos astros, da composição
dos corpos em matéria e forma; na ética, mostra
que o fim último do homem é procurar a posse do bem infinito, jamais dos bens
finitos, que envilecem a dignidade humana; na teodicéia, Santo Tomás atinge momento de grande esplendor,
superando os argumentos de Aristóteles na demonstração da existência de Deus;
na política, exposta no opúsculo De regimine principium, Tomás sustenta
que “quando os seres livres, reunidos em sociedade têm um soberano que zela pelo
bem comum, a sociedade, o governo é reto, justo e convém aos homens livres;
enfim, na filosofia e teologia, mostra o mestre as relações
harmônicas entre a razão e a fé, provando que a filosofia e a teologia são
duas ciências distintas, sem dúvida, mas não antagônicas. Poderá haver muitas
vezes a coincidência do objeto material,
de ambas as ciências, a existência de Deus, por exemplo, mas cada uma delas
(objeto formal) encara o mesmo objeto, por ângulos diversos.
4.4.5 O ESCOLA
TOMISTA
O tomismo fez
escola. Encontrou adeptos que o seguiram, citando-se, entre eles, Pedro
Tarentaise, professor de teologia e provincial dos dominicanos, que resumiu e
defendeu as grandes teses do sistema; Vicente de Beauvais, autor do Magnum Speculum; Oilles de Lessines e
Herveu de Nédellec.
Enfim, Dante Alighieri, escrevendo, em versos, o poema
famoso a Divina Comédia, expõe com
grande beleza poética as idéias mais correntes do tomismo, podendo-se, com
certa razão, afirmar que a Divina Comédia
é a Suma Teológica posta em
versos.
4.4.6 OS ANTI-TOMISTAS
O espírito brilhante e polêmico de Santo Tomás de Aquino
iria, evidentemente, suscitar oposição no seio da própria Igreja, chegando-se
mesmo a proibir a defesa e exposição de algumas teses do doutor angélico. Com o
tempo, entretanto, serenaram os ânimos, esfriaram as paixões e a doutrina de
Tomás volta a propagar-se, ganhando novos adeptos.
Entre os mais veementes opositores, citam-se os nomes,
hoje quase desconhecidos, de Guilherme de La Mare , que escreveu contra Tomás o livro Correptorium fratris Thomae, e João
Peckham, arcebispo de Cantuária, que proibiu a divulgação de algumas teses
tomistas.
4.4.7 CONCLUSÂO
Impossível é negar a evidência. Santo Tomás de Aquino,
aceitando ou reformulando o que de melhor produzira o gênio grego, em
especial, Aristóteles, revive as teses máximas de Santo Agostinho, passa pela
filosofia judaica e árabe, para compor o mais extraordinário conjunto
arquitetônico teológico-filosófico de todos os tempos, edifício que há mais de
700 anos resiste a todas as invectivas que contra ele se levantam — a Summa Theologicae, sistema coerente e
sintético, onde se refine o que de melhor produziram as inteligências do mundo
pagão e cristão, convergência possível pelo espírito lógico e inspirado que tudo
fundiu, numa contribuição humana, em que transparece o divino.
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