quinta-feira, 13 de junho de 2013

A controvérsia fundacionismo-coerentismo:
estereótipos endurecidos e teorias sobrepostas

Fundacionismo e coerentismo contêm, cada um, verdades epistemológicas significativas.[1] Ambas posições são, além disso, intelectualmente influentes mesmo para além da epistemologia. Porém, a maior parte dos filósofos que defendem uma dessas posições têm estado preocupados principalmente em argumentar por sua perspectiva e em demolir a outra, que eles têm interpretado freqüentemente através de apenas um proponente principal. Não é surpreendente, então, que os filósofos de cada uma dessas tradições freqüentemente sintam-se incompreendidos por aqueles da outra. A falta de clareza - e a estereotipia não sustentada - sobre ambos, fundacionismo e coerentismo, vai além do que se poderia esperar da diversidade terminológica e filosófica: há obscuridades genuínas e concepções equivocadas. Uma vez que ambas as posições, e especialmente o fundacionismo, são respostas ao problema do regresso epistêmico, eu quero começar por aí. Uma vez que se veja que esse enigma perene pode tomar duas formas completamente diferentes, tanto o fundacionismo quanto o coerentismo poderão ser melhor compreendidos.


I. Duas concepções do problema do regresso epistêmico

É amplamente admitido que o argumento do regresso epistêmico dá um suporte crucial ao fundacionismo. Mesmo os coerentistas, que rejeitam o argumento, concedem que o problema do regresso que o gera é importante para a motivação de suas perspectivas.[2] Existem ao menos dois contextos principais - freqüentemente não distinguidos - nos quais o problema do regresso aparece. Para um é central perseguir a questão de como alguém sabe, ou está justificado em acreditar, em alguma coisa em particular, mais tipicamente, uma proposição sobre o mundo externo, e.g., que alguém viu um urso na floresta. Este contexto é freqüentemente enriquecido ao conceber-se questões tais como os desafios céticos, e esta é a concepção deles mais importante para os nossos propósitos. Os desafios são freqüentemente capitaneados por “Como você sabe?” Para o outro contexto principal no qual o problema do regresso aparece são centrais questões sobre o que fundamenta o conhecimento ou a justificação, ou uma crença aceita como justificada ou como constituindo conhecimento, onde não há objetivo cético ou, ao menos, não um filosoficamente cético. Outros têrmos podem ser usados para estruturar estas questões. Pessoas interessadas em tais fundamentos podem, por exemplo, querer conhecer a fonte, as bases, as razões, a evidência ou a análise racional de uma crença. Nós devemos considerar o problema do regresso estabelecido em ambas as formas. Começo pela primeira.
Suponha que me seja perguntado como eu sei que p, digamos, que há livros em meu gabinete. O cético, por exemplo, formula a questão como um desafio. Eu posso responder citando um fundamento para a crença em questão, digamos, q: eu tenho uma clara lembrança dos livros em meu gabinete. O cético, então, desafia a aparente pressuposição de que eu conheço minha base de sustentação; afinal, se eu tenho uma base, é natural pensar que eu deveria estar apto (ao menos reflexivamente), não apenas para produzi-la, mas também para justificá-la: como mais eu poderia estar autorizada a tomá-la como uma base? Assim, se “Como você sabe?” é motivado por um interesse cético no conhecimento, a questão acerca de como eu sei provavelmente será reiterada, ao menos se minha base, q, não for auto-evidente; pois, a menos que q seja auto-evidente, e nesse sentido uma base auto-afirmadora para p, o questionador - particularmente se cético - irá aceitar minha citação de q como respondendo a “Como eu sei que p?” apenas com a suposição de que eu também sei que q. Quão longe pode esse questionamento razoavelmente ir?
Para os epistemólogos, o problema posto por “Como você sabe?” e “O que justifica você?” é responder a tais questões sem fazer um ou outro movimento aparentemente inevitável que ao fim mime a possibilidade do conhecimento ou mesmo da justificação. Inicialmente, parecem haver três opções desagradáveis. A primeira é rodar regressivamente em um círculo vicioso, digamos, de p para q como um fundamento para p, então para r como um fundamento para q, e então de volta a p como um fundamento para r. A segunda opção é cair em um regresso vicioso: de p para q como um fundamento para p, então para r como um fundamento para q, então para s como um fundamento para r, e assim por diante, indefinidamente. A terceira opção é parar em um fundamento alcançado, digamos s, que não se constitui nem em conhecimento, nem em crença justificada; porém o problema com isto é que, se alguém não sabe, nem justificadamente acredita em s é, no melhor dos casos, difícil ver como a citação de s possa responder à questão de como alguém sabe que p. A quarta opção é para em alguma coisa que seja conhecida ou justificadamente acreditada, digamos, r, mas não conhecida ou justificada sobre a base de qualquer outro conhecimento ou crença justificada. Aqui o problema, como muitos o vêem, é que r, que não é acreditado sobre qualquer outra base, serve apenas como uma forma arbitrária de parar o regresso e é apenas por capricho tomado como sendo conhecido ou justificadamente acreditado. Assim, citar r como uma resposta final para a cadeia de perguntas parece dogmático. Eu quero chamar a esta dificuldade - como responder, dialeticamente, questões sobre como alguém conhece, ou sobre o que o justifica - a forma dialética do problema do regresso.[3]
Imagine, por contraste, que nós consideremos, ou o corpo inteiro do conhecimento aparente de uma pessoa, como Aristóteles parece ter feito,[4] ou um item representativo do conhecimento aparente, digamos, minha crença de que há livros em meu gabinete, e pergunte sobre o que esse conhecimento aparente está fundado (ou baseado) e se, se está fundado sobre alguma outra crença, todo nosso conhecimento ou nossa crença justificada poderia estar assim fundado. Nós estamos, agora, inquirindo uma questão estrutural acerca do conhecimento, não requerendo uma resposta verbal em defesa de uma alegação a ele. Dialética alguma necessita sequer ser imaginada; nós estamos considerando o conhecimento total de uma pessoa, ou algum item presumivelmente representativo dele, e perguntando como esse corpo de conhecimento está estruturado ou como esse item do conhecimento está fundado. Novamente chegamos ao problema do regresso: como especificar os fundamentos de alguém sem circularidade ou regresso viciosos ou sem, por outro lado, parar em uma crença que não constitui conhecimento (ou não está justificada) ou que parece apenas caprichosamente considerada como conhecimento. Chamo a esta busca por fundamentos apropriados para o conhecimento a forma estrutural do problema do regresso.
Para ver como as duas formas do problema do regresso diferem, nós podemos pensar nelas como aparecendo desde diferentes formas de perguntar “Como você sabe?” Isto pode ser questionado com força cética, como um desafio às pessoas que, ou alegam conhecer algo, ou (mais comumente) pressupõem que alguma crença que eles confiantemente sustentam representa conhecimento. Aqui a questão é, grosseiramente, equivalente à “Mostre-me que você sabe.” Também pode ser questionado com força informacional, como quando alguém simplesmente quer saber por que caminho, tal como a observação ou o testemunho, pode-se chegar a saber algo. Aqui a questão é, grosseiramente, equivalente à “Como é que você sabe?” A forma cética da questão não pressupõe que a pessoa em questão tenha realmente qualquer conhecimento e, inquirida dessa forma não-comprometida, a questão tende a gerar a forma dialética do regresso. A forma informacional da questão tipicamente faz a pressuposição de que a pessoa conhece a proposição em questão. É fácil presumir que não importa a maneira em que nós formulemos o problema. Mas importa, por pelo menos quatro razões.
Saber versus mostrar que se sabe. Primeiro, a forma dialética do problema do regresso convida-nos a pensar que uma resposta adequada à “Como você sabe?” mostra que nós sabemos. Isto é assim particularmente no contexto de uma preocupação em responder ao ceticismo. Ocorre que o cético não está interessado na informação mais comumente buscada quando as pessoas perguntam como alguém conhece, digamos, informação sobre a origem da crença, e.g. sobre observação de primeira-mão enquanto oposta ao testemunho. Não é, entretanto, nada claro que uma resposta adequada à questão-como deva ser uma resposta adequada à questão-mostre. Se eu digo a você como eu sei que houveram danos no acidente citando o testemunho de testemunhas confiáveis que o viram, você pode ficar satisfeito; mas eu não mostrei que eu sei (como eu poderia, levando você à cena), e o cético que, com a força de um desafio, pergunta como eu sei, não iria ficar satisfeito. Eu terei respondido a forma informacional da questão, mas não a forma cética.
Conhecimento de primeira-ordem versus conhecimento de segunda-ordem. Segundo, quando o problema do regresso é formulado dialeticamente, qualquer resposta não-cética completa à “Como você sabe que p?” tenderá a implicar uma auto-adscrição epistêmica, digamos, “Eu sei que q”; assim, minha resposta é admissível apenas se eu tiver tanto o conceito de conhecimento - uma vez que de outra forma eu não entenderia o que estou atribuindo a mim mesmo- quanto estiver ao menos dialeticamente garantido em asserir que eu sei que q. Se você pergunta, informacionalmente, como eu sei que houveram danos, eu simplesmente digo (por exemplo) que eu o ouvi de Janet, que os viu. Mas se você pergunta, ceticamente, como eu o sei, eu compreenderei que você não aceitará a evidência que eu meramente tenho, mas apenas a evidência que eu conheço; e eu tenderei, então, a dizer algo que resulte em que eu sei que Janet viu os danos. Uma vez que isto consiste em alegar conhecimento de conhecimento, terá sucesso apenas se eu encontrar o padrão de segunda-ordem para ter conhecimento de que eu sei que ela viu isso. Se, todavia, o problema do regresso está formulado estruturalmente, é suficiente para a sua solução que existam proposições que, quer eu creia ou não nelas antes de ser questionado, tanto estão sustentadas para mim (é razoável para mim acreditar, quanto juntas justificam a proposição originalmente em questão. Para isto ser verdadeiro para mim, eu preciso apenas encontrar um padrão de primeira-ordem, e.g. recordando o acidente, e assim estar justificado em acreditar que houveram danos.
Ter, dar e mostrar uma solução. Terceiro, e largamente implícito nos dois primeiros pontos, as duas formulações do problema do regresso diferem quanto ao que deve ser sustentado a fim de haver, e para S dar, uma resposta adequada para “Como você sabe?” ou “O que justifica você?” Na formulação estrutural, se existem proposições sustentadas do tipo recém descrito, como quando eu tenho sustentação para acreditar que houveram danos, o problema (enquanto aplicado à p, a proposição em questão) tem uma solução; e se eu os cito ao responder “Como você sabe que p?”, eu dou uma solução ao problema. O problema tem uma solução devido à mera existência de proposições sustentadas para mim; e a solução é dada, e o problema é então efetivamente resolvido, pela minha simples afirmação daquelas proposições ao responder “Como você sabe?” Em contraste, quando o problema é dialeticamente formulado, é assumido ter-se uma solução se, não apenas existam tais proposições, mas eu também puder mostrar por meio de um argumento que elas existem; e para dar uma solução eu necessito, não meramente citar essas proposições, mas também mostrar que elas estão justificadas e que elas, por sua vez, justificam p. Assim, eu não posso dizer adequadamente como eu sei que há livros em meu gabinete citando a minha lembrança deles, a menos que eu possa mostrar por um argumento que tanto é garantido quanto justificado concluir que de fato há livros ali. Levantar a forma estrutural do problema pressupõe apenas que, se eu sei que p, eu tenha fundamentos para esse conhecimento que sejam expressáveis em proposições sustentadas para mim; não pressupõe que eu possa formular os fundamentos ou mostrar que eles implicam conhecimento. A forma estrutural, então, encoraja-nos à conceber soluções como proposicionais, no sentido de que elas dependem de proposições evidentes sustentadas para mim; a forma dialética encoraja a que se concebam soluções como argumentativas, porque elas dependem de que argumentos sobre a evidência estejam acessíveis para mim. Eu preciso estar apto para entrar na dialética com bons argumentos para p, não simplesmente estar sustentado em acreditar em proposições evidentes que justifiquem p.
O processo de justificação versus a propriedade de justificação. Quarto, a formulação dialética, ao menos enquanto aplicada à justificação (e assim, freqüentemente, ao conhecimento enquanto pelo menos comumente incorporando a justificação), tende a dirigir nossa atenção ao processo de justificação, i.e., de justificar uma proposição, embora a questão inicial refira-se a se a crença relevante tem a propriedade de justificação, i.e., de estar justificada. As formas céticas das questões “Como você sabe?” e “O que justifica você?” tendem a iniciar um processo de argumentação; “Mostre-me que você sabe” demanda uma resposta, e o que é esperado é um processo de justificação da crença de que p. A forma informacional daquelas questões  tende a dirigir alguém a citar um fundamento, tal como uma clara recordação, e o conhecimento ou (a propriedade de) justificação em questão pode ser tomada como estando baseada simplesmente nesse fundamento. “Por que via (ou sobre que bases) você sabe?” não necessita iniciar um processo (embora possa). Isto implica que prover um bom fundamento - um em virtude do qual a crença de que p tem a propriedade de estar justificada - irá responder completamente a questão. Por certo, o epistemólogo que desenvolve o problema do regresso em uma ou outra de suas formas precisa usar formulações de segunda-ordem (embora de formas diferentes); ainda assim, os critérios para o conhecimento e a crença justificada tendem a diferir dependendo de que abordagem é dominante na determinação daqueles critérios.
Se eu estou correto em pensar que as formulações estrutural e dialética do problema do regresso são significativamente diferentes, qual delas será preferível para avaliar a controvérsia fundacionismo-coerentismo? Uma consideração é a neutralidade; nós deveríamos tentar evitar o preconceito em relação à qualquer teoria epistemológica em particular. A formulação dialética, entretanto, favorece o coerentismo ou, ao menos, o não-fundacionismo. Deixem-me explicar.
Os fundacionistas tipicamente tomam as crenças que são fundadas na experiência ou na razão e são diretas - e, assim, não fundadas através de outras crenças intermediárias - em dois sentidos. Primeiro, elas são psicologicamente diretas: são não-inferenciais (no sentido mais comum do termo) e, portanto, não são sustentadas sobre as bases de (desde aí) alguma outra crença. Segundo, elas são epistemicamente diretas: elas não dependem (inferencialmente) para seu status enquanto conhecimento, ou para qualquer justificação que elas tenham, de outras crenças, justificação ou conhecimento. O primeiro tipo de crença direta não tem intermediário psicológico de tipo relevante, tais como crenças. O segundo tipo não tem intermediário evidencial, tal como o conhecimento de uma premissa para a crença em questão. Grosso modo, crenças epistemicamente diretas não são inferencialmente baseadas sobre outras crenças ou conhecimento, e este ponto decide sobre se há ou não qualquer verdadeiro processo de inferência.[5] Agora, imaginemos que, ao lidar com a forma dialética do problema do regresso, digamos, ao responder à questão de como eu sei que estou lendo material para esta noite, eu cite, como um fundamento apropriado, meu conhecimento de que existem livros em meu gabinete. Ao escolher isto como um exemplo de conhecimento, eu expresso uma crença de que eu de fato sei que existem livros em meu gabinete. Porém, estou eu sustentado nessa crença de segunda-ordem, assim como eu pareço estar sustentado em simplesmente acreditar que existem livros no gabinete (a primeira crença é construída como de segunda-ordem a partir da suposição de que conhecer acarreta acreditar, e a crença de que alguém conhece é, então, em algum sentido, uma crença sobre outra crença)? Claramente, é muito menos plausível alegar que minha crença de segunda-ordem, de que eu sei que existem livros em meu gabinete, é epistemicamente direta, do que exigir este status para a minha crença perceptiva de que existem livros ali; pois a última parece não-inferencialmente baseada em que os vejo, enquanto a primeira parece inferencial, e.g., baseada em crenças sobre o status epistêmico. Assim, os fundacionistas têm menor probabilidade de parecerem aptos à responder a formulação dialética do problema, visto que fazer isto requer tomar conhecimento direto de segunda-ordem (ou, ao menos, crença justificada direta de segunda-ordem).
Em resumo, a forma dialética do problema parece requerer que os fundacionistas apresentem fundamentos de uma ordem superior, e de um grau maior de complexidade, do que eles estão geralmente preparados para apresentar. O mesmo ponto emerge se nós notarmos que “Como você sabe?” pode ser repetido, e de alguma forma respondido, indefinidamente. De fato, uma vez que esta questão (ou uma similar) é central para a formulação dialética, esta formulação tende a ser hostil ao fundacionismo, o qual apresenta ao menos um tipo de lugar natural para deter o regresso: um lugar onde, mesmo que um desafio cético possa ser adequadamente respondido, ter uma resposta a ele não é necessário para ter conhecimento ou crença justificada.
Pode parecer, por outro lado, que a formulação estrutural, que acentua nossa efetiva constituição cognitiva, seja hostil em relação ao coerentismo ou, ao menos, ao não-fundacionismo. Pois, dado nosso conhecimento de psicologia cognitiva, é difícil ver como uma pessoa normal poderia ter algo próximo a uma cadeia infinita de crenças constituindo conhecimentos; por isso, uma cadeia infinita de respostas à “Como você sabe?” parece fora de questão. Porém, isto impede apenas uma abordagem de regresso infinito em epistemologia, não qualquer coerentismo finitista, o qual parece ser o único tipo alguma vez plausivelmente defendido. De fato, mesmo assumindo - como os coerentistas podem conceder - que muito do nosso conhecimento de fato surge não-inferencialmente a partir de estados de experiência como ver, a formulação estrutural do problema permite tanto que, como os fundacionistas tipicamente alegam, exista conhecimento não-inferencial, quanto que, como os coerentistas tipicamente alegam, crenças não-inferenciais sejam indefinidamente dialeticamente defensáveis e (quando verdadeiras) capazes de constituir o conhecimento apenas em virtude da coerência. A formulação estrutural pode não demandar que tais defesas estejam indefinidamente disponíveis; porém, ela não impede isso, nem mesmo limita o modo de defesa ao raciocínio circular.
Eu acredito, assim, que a formulação estrutural não está significativamente prevenida contra o coerentismo. Tampouco está prevenida a favor do internalismo sobre o externalismo a propósito da justificação, onde internalismo é, grosso modo, a perspectiva de que aquilo que justifica uma crença, tal como uma impressão visual, é interno no sentido de que alguém pode tornar-se (de alguma forma) ciente dela através da reflexão ou da introspecção (processos internos), e o externalismo nega que aquilo que justifica uma crença sempre seja acessível para alguém nesse sentido. A formulação dialética, em contraste, tende a favorecer o internalismo, uma vez que ela nos convida a ver o problema do regresso como resolvido em têrmos de que proposições sustentadas para alguém são também acessíveis para ele em respondendo “Como você sabe que p?” Se a formulação estrutural está prevenida contra o internalismo ou o coerentismo, eu não estou ciente de boas razões para pensar assim, e trabalharei assim aqui.


II. O argumento do regresso epistêmico

Se nós formularmos estruturalmente o problema do regresso, então uma maneira natural de estabelecer o famoso argumento pode ser encontrada ao longo destas linhas. Primeiro, suponha que eu tenha conhecimento, ainda que seja apenas de algo tão simples quanto haver um ruído fora da minha janela. Poderia todo o meu conhecimento ser inferencial? Imagine que isto é possível em virtude de um regresso epistêmico infinito - grosso modo, uma série infinita de conhecimentos, cada um baseado (inferencialmente) no seguinte. Apenas suponha que uma crença que constitui conhecimento inferencial está baseada no conhecimento de alguma outra proposição, ou ao menos em uma crença adicional de outra proposição; a crença ou conhecimento adicional pode estar baseada no conhecimento de, ou crença em, algo ainda mais além, e assim por diante. Chamo a esta seqüência uma cadeia epistêmica; ela é simplesmente uma cadeia de crenças, com pelo menos a primeira constituindo conhecimento, e cada crença ligada à anterior por estar baseada nela. Uma perspectiva padrão é a de que existem apenas quatro tipos: uma cadeia epistêmica pode ser infinita ou circular, portanto, em quaisquer dos casos, interminável e nesse sentido regressiva, terceiro, ela pode terminar com uma crença que não é conhecimento; e quarto, ela pode terminar com uma crença que constitui conhecimento direto. O problema do regresso epistêmico paira sobre todos esses tipos para avaliar as cadeias como possíveis fontes (ou ao menos transmissores) de conhecimento ou justificação.
A resposta fundacionista ao problema do regresso é oferecer um argumento do regresso favorecendo a quarta possibilidade como a única genuína. O argumento pode ser formulado ao longo destas linhas:
1. Se alguém tem algum conhecimento, ele ocorre em uma cadeia epistêmica (possivelmente incluindo o caso especial de um elo singular, tal como uma crença perceptiva ou a priori, a qual constitui conhecimento em virtude de estar ancorada diretamente na experiência ou na razão);
2. os únicos tipos possíveis de cadeias epistêmicas são os quatro tipos mutuamente excludentes recém-esboçados;
3. conhecimento pode ocorrer apenas no último tipo de cadeia; portanto,
4. se alguém tem algum conhecimento, ele tem ao menos algum conhecimento direto.[6]
Alguns esclarecimentos preliminares são apresentados em ordem antes de avaliarmos este argumento.
Primeiro, a conclusão, sendo condicional, não pressupõe que haja algum conhecimento. Isto preserva a neutralidade do argumento com respeito ao ceticismo, como é apropriado desde que a questão se refere aos requerimentos conceituais para a posse do conhecimento. O argumento teria uma implicação existencial, e assim não seria puramente conceitual, se pressupusesse que conhecimento e, então, que ao menos um conhecedor existe. Segundo, eu assumo que (1) implica em que o conhecimento inferencial depende de ao menos uma cadeia epistêmica para seu status enquanto conhecimento. Dessa forma, eu assumo que o argumento implica a conclusão adicional de que qualquer conhecimento inferencial que se tenha exibe dependência epistêmica (inferencial) sobre alguma conexão inferencial apropriada, via alguma cadeia epistêmica, com algum conhecimento não-inferencial que se tenha. Desse modo o argumento mostraria não apenas que, se há conhecimento inferencial, conhecimento não-inferencial, mas também que, se há conhecimento inferencial, esse mesmo conhecimento é remontável até algum conhecimento não-inferencial como seu fundamento.
O segundo ponto sugere um terceiro. Se duas cadeias epistêmicas entrecruzassem-se, como quando uma crença de que p é tanto fundacionalmente fundada na experiência quanto parte de uma cadeia circular, então, se a crença é conhecimento, esse conhecimento apenas ocorre dentro da primeira cadeia, ainda que o conhecimento enquanto crença pertença à ambas as cadeias. O conhecimento, então, não ocorre em uma cadeia simplesmente porque a crença que o constitui o faz. Quarto, o argumento diz respeito à estrutura, não ao conteúdo de um corpo de conhecimento e de suas cadeias epistêmicas constituintes. O argumento pode, então, ser usado a despeito de que pretendidos itens de conhecimento alguém aplique em qualquer pessoa em particular. O argumento não pressupõe que, a fim de haver conhecimento, hajam coisas específicas nas quais se deva acreditar, ou que um corpo de conhecimento deva ter algum conteúdo em particular.
Um argumento similar aplica-se à justificação. Nós falamos simplesmente de cadeias justificativas e procedemos de forma paralela, substituindo justificação por conhecimento. A conclusão seria que, se existem quaisquer crenças justificadas, existem algumas crenças não-inferencialmente justificadas e que, se se tem qualquer crença inferencialmente justificada, ela exibe dependência justificativa (inferencial) sobre uma cadeia epistêmica, apropriadamente ligando-a à alguma crença justificada não-inferencialmente que se tenha, isto é, a uma crença fundacional. Ao discutir o fundacionismo, eu freqüentemente enfocarei a justificação.
Uma avaliação completa do argumento do regresso é impossível aqui. Eu simplesmente comentarei alguns importantes aspectos dele a fim de prover um melhor entendimento do fundacionismo e de algumas das principais objeções a ele.
Apelar para cadeias epistêmicas infinitas raramente tem parecido promissor aos filósofos. Deixem-me sugerir uma razão para duvidar de que os seres humanos sejam mesmo capazes de ter conjuntos infinitos de crenças. Considere a alegação de que nós podemos ter um conjunto infinito de crenças aritméticas, digamos, de que 2 é o dobro de 1, de que 4 é o dobro de 2, etc. Seguramente, para uma mente finita, haverá um ou outro ponto no qual a proposição relevante não poderá ser compreendida. A formulação requerida (ou a manutenção da proposição) iria, no caminho “em direção” à infinidade tornar-se longo demais para  permitir compreendê-lo. Então, mesmo que nós pudéssemos lê-lo ou considerá-lo parte por parte, quando nós chegássemos ao fim estaríamos incapacitados de recordar o suficiente da primeira parte para compreender e, assim, acreditar no que a formulação expressa. Certamente nós poderíamos acreditar que a formulação recém lida expressa uma verdade; mas isto não é suficiente para acreditar na verdade que ela expressa. Esta verdade é uma afirmação matemática específica; acreditar, de uma formulação que nós não podemos sequer manter diante de nossas mentes ou recordar como um todo, que ela expressa alguma verdade matemática, não é suficiente para acreditar, ou mesmo compreender, a afirmação verdadeira em questão. Desde que nós não podemos compreender a formulação como um todo, nós não podemos compreender esta verdade; e aquilo que nós não compreender é algo em que nós não podemos acreditar. Eu duvido que quaisquer outras linhas do argumento mostrem que nós possamos ter um conjunto infinito de crenças; nem, se nós pudermos, será claro como cadeias epistêmicas infinitas poderiam dar conta de quaisquer de nossos conhecimentos. Eu proponho, então, considerar somente os outros tipos de cadeia.
A possibilidade de uma cadeia epistêmica circular como uma base para o conhecimento tem sido tomada muito mais seriamente. A objeção padrão tem sido a de que tal circularidade é viciosa porque, em última análise, ter-se-ia de conhecer alguma coisa com base em si mesma - digamos, p sobre a base de q, q sobre a base de r, e r sobre a base de p. Uma réplica padrão tem sido a de que se o círculo é amplo o suficiente, e seu conteúdo suficientemente rico e coerente, a circularidade é inócua. Eu contorno essa difícil questão dado que eu acredito que esse coerentismo, mais plausivelmente formulado, não depende de cadeias circulares.[7]
A terceira alternativa, a saber, aquela em que uma cadeia epistêmica termina em uma crença que não é conhecimento tem sido, no melhor dos casos, raramente afirmada; e há pouca plausibilidade na hipótese de que o conhecimento possa originar-se através da crença em uma proposição que S não conhece. Se há exceções é quando, embora eu não saiba que p, eu estou justificado, em alguma extensão, em acreditar que p, como ao fazer uma estimativa razoável de que há ao menos trinta livros sobre uma certa prateleira. Aqui, o caso é diferente. Suponha que eu pareça ouvir, vagamente, melodias musicais. Se, sobre a base desse resultado, algo como a crença justificada de que há música tocando, eu acredite que minha filha chegou em caso, e ela chegou, isto é algo que eu sei? A resposta não é clara. Mas esta aparente indeterminação não irá ajudar quem quer que alegue que o conhecimento possa surgir de crenças que não constituem conhecimento. Pois é igualmente obscuro, e pelo mesmo tipo de razão, se minha crença de que há música tocando é suficientemente razoável - digamos, em têrmos de quão bons são meus fundamentos perceptuais - para dar-me o conhecimento de que a música está tocando. Quanto mais forte é nossa inclinação para dizer que eu sei que ela está em casa, mais forte é nossa inclinação para dizer que eu sei, afinal, que há melodias musicais no ar. Note outra coisa. Nos únicos casos em que o terceiro tipo de cadeia parece provavelmente fundar o conhecimento (ou a justificação), há um grau - aparentemente, um grau substancial - de justificação. Se pode haver uma cadeia epistêmica que termine com crença que não é conhecimento apenas porque ela termina, desta forma, com justificação, então nós aparentemente estamos nas proximidades do conhecimento. Nós parecemos estar, quando muito, à poucos graus da justificação. O conhecimento não está emergindo do nada, por assim dizer - a imagem originalmente evocada pelo terceiro tipo de cadeia epistêmica -, mas de algo caracteristicamente muito parecido com isto: crença verdadeira justificada. Assim, haveria afinal uma fundação: não um leito rochoso mas, talvez, solo que é todavia firme o suficiente para sustentar uma fundação sobre a qual nós possamos edificar.
A quarta possibilidade é a de que as cadeias epistêmicas originadas com o conhecimento terminem em conhecimento não-inferencial: conhecimento não inferencialmente baseado em mais conhecimento (ou mais crença justificada). Este conhecimento, por sua vez, está aparentemente fundado na experiência, digamos, em minha impressão auditiva da música ou em meu sentido intuitivo de que se A está a uma milha de B, então B está a uma milha de A. Este fundamento não-inferencial de meu conhecimento é (epistemicamente) direto. Ele surge não-inferencialmente - e, assim, sem qualquer premissa intermediária que deva ser conhecida ao longo - de (eu devo supor) um dos quatro tipos clássicos de material fundacional, a saber, percepção, memória, introspecção e razão.
Um tal fundamento direto na experiência parece também explicar porque uma crença assim fundada pode esperar ser verdadeira; pois a experiência parece conectar as crenças que ela funda na realidade sobre a qual elas aparentemente são de uma forma tal que aquilo que é acreditado a propósito dessa realidade tende a ser o caso. Para as crenças empíricas, ao menos, este ponto parece explicar melhor porque nós temos aquelas crenças. Deixem-me ilustrar tudo isto. Normalmente, quando eu sei que há música tocando, é exatamente porque eu a ouço, e não sobre a base de alguma outra crença minha; assim, a cadeia que fundamenta meu conhecimento de que minha filha chegou em casa está ancorada em minha percepção auditiva que, por sua vez, reflete a realidade musical representada pelo meu conhecimento de que há música tocando. Esta realidade explica tanto minha percepção quanto, pela explicação desta, indiretamente explica minha crença na proposição que eu conheço sobre a base dessa percepção - que minha filha está em casa.
As cadeias epistêmicas não-inferencialmente fundadas em questão podem diferir de muitas formas. Elas diferem composicionalmente nas espécies de crenças que as constituem e causalmente no tipo de relação causal sustentada entre uma crença e sua sucessora.. Esta relação, por exemplo, pode ou não implicar em que a crença predecessora seja necessária ou suficiente para a sua sucessora: talvez, desde bases outras do que a da música, eu teria acreditado que minha filha estivesse em casa; e talvez não, dependendo de quantas indicações de sua presença fossem acessíveis para mim. Tais cadeias também diferem estruturalmente, no tipo de transmissão epistêmica que elas exibem; elas podem ser dedutivas, como quando eu infiro um teorema de um axioma através de regras rigorosas de inferência dedutiva, ou indutivas, como quando eu infiro, desde a boa performance de uma faca, que ela é do tipo que também irá cortar bem; ou a transmissão do conhecimento ou da justificação pode combinar elementos dedutivos e indutivos. Cadeias epistêmicas também diferem  fundacionalmente, em suas últimas, as âncoras das cadeias; as bases podem, como foi ilustrado, serem perceptuais ou racionais, e elas podem variar em sua força justificacional.
Diferentes proponentes da quarta possibilidade têm sustentado várias perspectivas sobre o caráter do conhecimento fundacional, i.e., das crenças que constituem o conhecimento que compõe o elo final e ancora a cadeia na experiência ou na razão. Alguns, incluindo Descartes, têm pensado que as crenças apropriadas devam ser infalíveis ou, ao menos, irrevogavelmente justificadas.[8] Porém, de fato, tudo o que a quarta possibilidade requer é conhecimento não-inferencial, conhecimento não (inferencialmente) baseado em outro conhecimento (ou outra crença justificada). O conhecimento não-inferencial não necessita ser de proposições auto-evidentes, nem constituído por crenças irrevogavelmente justificadas, o tipo cuja justificação não pode ser revogada. O caso das crenças introspectivas, que é o paradigma daquelas que são não-inferencialmente justificadas, suporta essa perspectiva, e nós veremos outras razões para sustentá-las.


III. Fundacionismo falibilista

O fundacionismo ao qual chega o argumento do regresso é bastante genérico e deixa muito por ser determinado, tal como o quão bem justificadas as crenças fundacionais devem ser se elas vão justificar uma superestrutura de crenças baseadas nelas. Para avaliar a controvérsia fundacionista-coerentista, então, nós precisamos de uma formulação mais detalhada. A tarefa desta seção é desenvolver uma tal formulação. Começo com um exemplo concreto.
Quando eu sento à ler em uma silenciosa noite de verão eu ouço, ás vezes, um ruído distinto além de minha janela aberta. Imediatamente, eu acredito que está chovendo. Pode então ocorrer-me que, se eu não trouxer para dentro as cadeiras do gramado, as almofadas ficarão ensopadas. Porém, eu não acredito nisso imediatamente, ainda que o pensamento me arrebata em um instante; eu o acredito sobre a base de minha crença anterior, de que está chovendo. A primeira crença é perceptiva, estando fundada diretamente no que eu ouço. A segunda é inferencial, estando fundada não no que eu percebo, mas no que eu acredito. Minha crença de que está chovendo expressa uma premissa para a minha crença de que as almofadas ficarão ensopadas. Existem muitas crenças de ambos os tipos. A percepção é a maior fonte de crenças; e, desde as crenças que nós temos pela percepção, muitas outras crenças surgem inferencialmente. As últimas, as crenças inferenciais estão, assim, baseadas nas primeiras, as crenças perceptuais. Quando eu vejo o facho de um farol cruzar a minha janela e imediatamente creio, perceptivamente, que a luz de um carro move-se lá fora, eu posso, sobre a base dessa crença, chegar a acreditar, inferencialmente, que alguém entrou no meu pátio. Desta proposição, por sua vez, eu posso inferir que minha campainha está a ponto de tocar; e desta eu posso inferir ainda outras proposições. Assumindo que o conhecimento implica a crença, o mesmo vale para o conhecimento: boa parte dele é perceptivamente fundado, boa parte é inferencial.[9] Não há limite definido para quantas inferências pode-se tirar de uma tal cadeia, e as pessoas diferem em quantas elas tendem a tirar. Pode ocorrer, entretanto, que a despeito da aparente obviedade desses casos, realmente haja conhecimento ou crença não-inferenciais, mesmo nos casos perceptuais? Se a inferência pode levar-nos adiante indefinidamente para além das crenças perceptuais, porque não poderia levar-nos indefinidamente para trás delas? Para ver como isto pode ser imaginado ocorrer, nós devemos considerar mais sistematicamente como as crenças surgem, o que as justifica, e quando elas são suficientemente bem fundadas para constituírem conhecimento.
Imagine que, quando a chuva começou, eu não confiei nos meus ouvidos. Eu posso, então, ter acreditado apenas na proposição mais fraca de que há um som tamborilante e somente sobre essa base, e após considerar a situação, ter chegado a acreditar que estava chovendo. Todavia, nós não precisamos parar aí. Suponha que eu não confiei no meu sentido auditivo. Eu posso, então, meramente acreditar que me parece haver um tamborilar, e apenas sobre esta base acreditar que existe uma tal som. Porém, seguramente isto não pode ir muito mais longe e, de fato, não há sequer necessidade de vir até aqui. E, entretanto, que razão teórica há para parar? Não é como se nós tivéssemos de articular todas as nossas crenças. Pouco daquilo em que nós acreditamos está ao mesmo tempo diante de nossas mentes sendo internamente dito. Com efeito, talvez nós possamos ter infinitas crenças, como alguns pensam.[10] Porém, como já sugerimos, simplesmente não é claro como o sistema cognitivo de uma pessoa possa sustentar um conjunto infinito de crenças, e quase o mesmo pode ser dito a propósito de uma cadeia cognitiva circular.
Ainda que pudessem haver cadeias infinitas ou circulares de crenças, os fundacionistas sustentam que elas não podem ser as fontes do conhecimento ou da justificação. A idéia subjacente é, em parte, a seguinte. Se o conhecimento ou a crença justificada surgem através da inferência, ela requer crença em ao menos uma premissa; e essa crença poderia produzir conhecimento ou crença justificada em uma proposição inferida da premissa apenas se a crença na premissa for, ela mesma, uma instância de conhecimento, ou esteja, ao menos, justificada. Porém, se a crença na premissa está justificada, deve ser em virtude de algo - de outro modo, ela seria auto-justificada e assim, afinal, um tipo de crença fundacional. Se, entretanto, a experiência não pode fazer o trabalho da justificação, então a crença deve derivar sua justificação de ainda outro conjunto de premissas e todo o problema levanta-se novamente: o que justifica esse conjunto? À luz de tais questões, os fundacionistas concluem que, se quaisquer de nossas crenças são justificadas ou constituem conhecimento, então algumas de nossas crenças são justificadas, ou constituem conhecimento, simplesmente porque elas surgem (de certa maneira) da experiência ou da reflexão (incluindo aí a intuição como um caso especial de reflexão). Com efeito, se nós construímos a experiência de forma ampla o suficiente a para incluir a reflexão lógica e a intuição racional, então a experiência pode ser descrita como a fonte geral. Em qualquer caso, parecem haver ao menos quatro fontes básica de conhecimento e crença justificada: a percepção, a consciência, a qual fundamenta, e.g., meu conhecimento de que estou pensando sobre a estrutura da justificação; a reflexão, a qual é, por exemplo, a base de minha crença justificada de que, se A é mais velho do que B, e B é mais velho do que C, então A é mais velho do que C; e a memória: eu posso estar justificado em acreditar que, digamos, eu deixei a luz acesa, simplesmente em virtude da sensação de recordar ter feito isso.[11]
Particularmente nos casos perceptuais alguns fundacionistas tendem a ver a experiência como um espelho da natureza.[12] Esta parece, para alguns fundacionistas, quando limitada, uma boa metáfora, pois sugere ao menos duas idéias importantes: primeiro, que algumas experiências são produzidas pelos estados externos do mundo, assim como a luz produz imagens no espelho; e, segundo, que as experiências (normalmente), de alguma forma, correspondem às suas causas, por exemplo, nas cores e formas que uma pessoa percebe em seu campo visual.[13] Se quer-se enfocar crenças perceptuais individuais, pode-se pensar no modelo do termômetro; ele sugere tanto as conexões causais recém esboçadas quanto, ainda, talvez até mesmo mais do que a metáfora do espelho, respostas confiáveis ao mundo externo.[14] Desde essa perspectiva causal-responsiva é, no melhor dos casos, inatural considerar as crenças perceptuais como inferenciais. Elas não são formadas por inferência desde qualquer outra coisa em que se acredita, mas refletem diretamente os objetos e eventos que os causam.
O tipo mais plausível de fundacionismo será falibilista (moderado) ao menos nos seguintes aspectos - e eu me concentrarei sobre a justificação no fundacionismo, ainda que muito do que é dito também possa ser sustentado para o conhecimento no fundacionismo. Primeiro, enquanto uma tese puramente filosófica acerca da estrutura da justificação, o fundacionismo deveria ser neutro a propósito do ceticismo, e não deveria implicar que existam crenças justificadas. Segundo, se é falibilístico, deve permitir que uma crença justificada, mesmo uma crença fundacional, seja falsa. Requerer aqui justificação de um tipo tal que acarrete a verdade é requerer que as crenças justificadas fundacionais sejam infalíveis. Terceiro, crenças superestruturais podem ser apenas indutivamente, portanto falivelmente, justificadas pelas crenças fundacionais e, assim (a menos que elas sejam verdades necessárias), elas podem ser falsas mesmo quando estas últimas sejam verdadeiras. Exatamente como as crenças sustentadas por uma pessoa podem ser falíveis, suas inferências podem estar conduzindo da verdade para a falsidade. Se a proposição é suficientemente suportada pela evidência na qual justificadamente acredita-se, pode-se justificadamente sustentá-la com base nessa evidência, ainda que possa resultar estar-se em erro. Quarto, um fundacionismo falibilista deve permitir a descoberta do erro ou da falta de justificação, tanto nas crenças fundacionais quanto nas superestruturais. Crenças fundacionais podem revelar-se conflitantes com outras do mesmo tipo ou com crenças superestruturais suficientemente bem-sustentadas.
Estes quatro pontos são bastante apropriados à inspiração da teoria tal como expressa no argumento do regresso: ela requer móbiles epistêmicos imotos, mas não móbiles inamovíveis. Um terreno sólido é suficiente, ainda que um leito rochoso seja melhor. Existem, ainda, diferentes tipos de leitos rochosos, e nem todos eles tem a invulnerabilidade aparentemente pertencente à crenças em verdades luminosamente auto-evidentes da lógica. Até mesmo o fundacionismo tal como aplicado ao conhecimento pode ser falibilístico; para garantir que proposições falsas não possam ser conhecidas, o fundacionismo sobre o conhecimento não acarreta que os fundamentos que alguém tenha para o conhecimento (em qualquer nível) sejam inderrotáveis. Fundamentos perceptuais, e.g., podem ser anulados; e pode-se falhar (ou cessar) em conhecer uma proposição, não porque ela seja (ou seja descoberto que ela é) falsa, mas porque se cessa de estar justificado em acreditar nela.
Eu assumo que o fundacionismo falibilista, enquanto aplicado à justificação, seja a tese indutivista de que
I.   Para qualquer S e qualquer t, (1) a estrutura do corpo de crenças justificadas de S, em t, é fundacional no sentido de que quaisquer crenças justificadas inferenciais (portanto, não-fundacionais) de S dependem, para a sua justificação, de uma ou mais crenças justificadas não-inferenciais (assim, nesse sentido, fundacionais) de S; (2) a justificação das crenças fundacionais de S é, ao menos tipicamente, derrotável; (3) a transmissão inferencial de justificação não precisa ser dedutiva; e (4) crenças não-fundacionalmente justificadas não necessitam derivar toda a sua justificação das crenças fundacionais, mas apenas o suficiente para que elas permanecessem justificadas mesmo que (outras coisas permanecendo iguais) qualquer outra justificação que elas tivessem (digamos, da coerência) fosse eliminada .[15]

Isso é falibilista de pelo menos três maneiras. Crenças fundacionais podem resultar, ou injustificadas, ou falsas, ou ambos; crenças superestruturais podem ser justificadas apenas indutivamente, portanto falivelmente, pelas crenças fundacionais e, assim, podem ser falsas mesmo quando as últimas sejam verdadeiras; e a possibilidade de descobrir erro ou falta de justificação, mesmo em crenças fundacionais, é deixada em aberto: pode vir a ser descoberto que elas conflitam, ou com outras crenças do mesmo tipo, ou com crenças superestruturais suficientemente bem sustentadas. Até mesmo o fundacionismo aplicado ao conhecimento pode repudiar a infalibilidade. Pois, ainda que crenças falsas não possam constituir conhecimento, o que é conhecido pode tanto ser contingente - e assim pode ter sido falso - quanto ser baseado em fundamentos derrotáveis - e assim pode cessar de ser conhecido. Nós podemos perder o conhecimento quando nossos fundamentos para ele são derrotados pela contra-evidência. Mesmo fundamentos introspectivos são anuláveis; assim, até mesmo o auto-conhecimento é derrotável.
Uma vez que eu estou particularmente interessado em esclarecer o fundacionismo em contraste com o coerentismo, eu quero enfocar os papéis que o fundacionismo falibilista atribui à coerência (concebida segundo qualquer forma plausível) em relação com a justificação. Existem ao menos dois importantes papéis que a coerência pode, aparentemente, desempenhar.
primeiro papel que o fundacionismo falibilista concede à coerência - ou, ao menos, para a incoerência - é negativo. A incoerência pode derrotar a justificação ou o conhecimento, até mesmo a justificação de uma crença diretamente justificada (ou que constitua conhecimento), portanto fundacional, tal como quando minha justificação para acreditar que eu estou tendo alucinações com livros previnem-me de saber, ou permanecer justificado em acreditar em, certas proposições incoerentes com ela, digamos, que os livros em meu gabinete estão diante de mim. Se este não é, em última instância, um papel para a própria coerência - a qual é o oposto, e não meramente a ausência de incoerência - é um papel crucial para explicar questões destacadas pelo coerentismo. Os coerentistas não têm levado em consideração a questão de que a incoerência não é meramente a ausência de coerência, e não pode ser explicada simplesmente através da análise da coerência, nem considerada como um padrão epistêmico apenas por uma teoria coerentista (um ponto ao qual eu retornarei); mas eles têm acertadamente percebido, por exemplo, coisas tais como a derrotabilidade da justificação de uma crença mnemônica devido à sua incoerência com crenças perceptuais, como quando alguém recorda um carvalho em um certo lugar e, ainda assim, ao aproximar-se desse mesmo lugar, não encontra sinal dele. Dado que o fundacionismo falibilista não requer uma justificação inderrotável da parte da crença mnemônica relevante, não há anomalia em sua derrota pela evidência perceptiva.
Segundo, o fundacionismo falibilista pode empregar um princípio de independência, um de uma família de princípios comumente enfatizados pelos coerentistas, embora os fundacionistas não necessitem atribuir sua verdade à coerência. O princípio diz que, quanto maior for o número de fatores coerentes mutuamente independentes em que alguém acredita para sustentar a verdade de uma proposição, melhor é a justificação que se tem para acreditar nela (outras coisas sendo iguais). O princípio pode explicar, e.g., porque minha justificação para acreditar, a partir daquilo que ouço, que minha filha chegou em casa, aumenta quando eu adquiro novas crenças parar suportar essa conclusão, digamos, que há um cheiro de pipoca. Pois agora eu tenho uma crença confirmatória que chega através de um sentido diferente (olfato) e que não depende, para a sua justificação, de minhas outras crenças evidenciais.
Princípios semelhantes, consistentes com o fundacionismo, podem acomodar outros casos nos quais a coerência aparentemente acentua a justificação, por exemplo, quando a explicação de uma proposição, e que portanto é coerente como algo em que justificadamente se acredita, tende a conferir alguma justificação a essa proposição. Suponha que eu registre três malas no balcão de registros. Imagine que, enquanto eu espero por elas no terminal de bagagem eu vislumbre duas, à distância, no transportadores e, hesitantemente, acredite que elas são minhas.  As proposições de que (a) a primeira é minha, (b) a segunda é minha, e ( c ) estas duas estão lado a lado - o que eu estou completamente justificado em acreditar, pois eu posso ver claramente o quão próximas elas estão uma da outra - iriam ser explicadas pela hipótese de que minhas três malas estão vindo juntas agora; e esta hipótese, por seu turno, deriva alguma justificação desde sua explicação, na qual eu acredito. Quando eu acredito na proposição adicional, independente de (a) - ( c ), de que minha terceira mala está vindo logo atrás da segunda, o nível de minha justificação para a hipótese aumenta.
O fundacionismo falibilista permite à coerência, então, jogar um papel significativo, embora restrito, ao explicar a justificação e ela proporciona um papel muito importante para a incoerência nessa tarefa. Porém, permanece ainda um forte contraste entre as duas descrições da justificação, como nós logo veremos.


IV. Coerentismo holista

Recorre-se freqüentemente à noção de coerência em contextos epistemológicos e outros contextos, porém, ela é pouco freqüentemente explicada. A despeito dos esforços que têm sido feitos para esclarecer a coerência, explicar o que ela é permanece difícil.[16] Ela não é a mera consistência, ainda que a inconsistência seja o mais claro caso de incoerência. O que quer que ela seja, ela é uma relação cognitivamente interna, no sentido de que é uma questão de como as crenças de uma pessoa (ou outros itens cognitivos) estão relacionadas umas com as outras, e não com qualquer coisa fora do sistema de crenças da pessoas, tal como com a sua experiência perceptiva. A coerência é, algumas vezes, conectada com a explicação; acredita-se amplamente que proposições que estão em relações explicativas são coerentes umas com as outras e que esta coerência conta em relação às crenças da pessoas nas proposições em questão. Se o murchar das folhas é explicado pelas ondas de fumaça de uma fogueira química então, presumivelmente, a proposição que expressa o primeiro evento é coerente com a proposição que expressa o segundo (ainda que a coerência não seja evidente e seja relativa ao contexto). A probabilidade também é relevante: se a probabilidade de uma proposição na qual você acredita é aumentada por aquela de uma segunda proposição na qual você acredita, isto conta ao menos em relação à coerência da primeira das crenças com a segunda. As noções relevantes de explicação e probabilidade são, elas próprias, filosoficamente problemáticas, mas a nossa compreensão intuitiva delas ainda pode nos ajudar a compreender a coerência.
À luz dessas questões, deixem-nos tentar formular uma versão plausível do coerentismo enquanto aplicado à justificação. A idéia coerentista central no que se refere à justificação é a de que uma crença é justificada pela sua coerência com outras crenças que se sustenta. A unidade de coerência pode ser tão ampla quanto o conjunto inteiro de crenças que se tenha, embora algumas delas possam ser mais significativas para produzir a coerência do que outras, digamos, devido aos diferentes graus de sua proximidade ao assunta da crença em questão. Esta concepção do coerentismo iria ser aceita por um proponente da perspectiva circular, mas a tese que eu quero explorar difere dessa perspectiva por não ser linear: ela não assume que a justificação para acreditar que p, ou saber que p, emerjam de uma linha inferencial que corre das premissas para p até essa proposição enquanto uma conclusão para elas, e de outras premissas para o primeiro conjunto de premissas, e assim por diante até nós retornarmos à proposição original enquanto uma premissa. Na perspectiva circular, não importa o quão amplo seja o círculo ou quão ricas sejam suas crenças constituintes, há uma linha desde qualquer crença de uma cadeia epistêmica circular até qualquer outra crença. Na prática, eu nunca posso traçar a linha inteira, inferindo uma coisa que eu sei de uma segunda, a segunda de uma terceira e assim por diante, até eu re-inferir a primeira. Ainda assim, nessa perspectiva existe uma tal linha para cada crença que constitui o conhecimento.
O coerentismo não necessita, entretanto, ser linear, e eu acredito que as versões mais plausíveis são, ao invés, holistas.[17] Uma versão moderada do coerentismo holista pode ser expressa como segue:
Para qualquer S e qualquer t, se S tem quaisquer crenças justificadas em t, então, em t, (1) cada uma delas está justificada em virtude de sua coerência com uma ou mais outras crenças de S; e (2) elas permaneceriam justificadas ainda que (outras coisas permanecendo iguais) qualquer justificação que elas derivem de fontes outras do que a coerência fosse eliminada.

O holismo requerido é mínimo, uma vez que a unidade de coerência pode ser tão pequena quanto um par de crenças - embora também possa ser tão grande quanto o sistema inteiro de crenças de S (aí incluída a crença cuja justificação está em questão, uma vez que nós podemos tomar uma tal “auto-coerência” parcial como um caso limite). Mas a formulação também se aplica aos casos mais típicos de coerentismo holista: nestes casos, uma crença justificada é coerente com um número substancial de outras crenças, mas não necessariamente com todas as crenças de uma pessoa. Algumas crenças, tais como aquelas que expressam princípios básicos do pensamento de uma pessoa, podem ser justificadas apenas pela coerência com um grupo grande e diversificado de crenças relacionadas. As teorias coerentistas diferem no referente ao sentido (se algum há) em que o conjunto de crenças cuja coerência determina a justificação de alguma crença pertencente a ele deve ser um “sistema”.
Para ilustrar o coerentismo holista, considere uma questão que evoca uma justificação. Ken pergunta-se como, desde  meu gabinete fechado, eu sei (ou porque eu acredito) que minha filha está em casa. Eu digo que está tocando música na casa. Ele, a seguir, quer saber como eu posso reconhecer a música de minha filhas por detrás de minhas portas fechadas. Eu respondo que o que eu ouço é o tipo errado de coisa para vir de qualquer casa próxima. Ele então pergunta como eu sei que não é de um carro que passa. Eu digo que o volume é demasiado constante. Ele agora pergunta se eu posso distinguir, por detrás de minhas portas fechadas, a música vocal de minha filha do cantarolar de um vizinho em seu jardim. Eu respondo que ouço um acompanhamento. Ao dar cada justificação eu avanço, aparentemente, apenas um passo ao longo da linha inferencial: inicialmente, por exemplo, apenas para a minha crença de que há música tocando na sala. Pois minha crença de que minha filha está em casa está baseada nesta crença sobre a música. Após isto, eu nem mesmo menciono qualquer coisa sobre o que esta crença esteja, por sua vez, baseada; antes disto, eu defendo minhas crenças enquanto apropriadas em termos de um padrão inteiro de crenças interrelacionadas que eu sustento. E eu posso apelar para muitas partes diferentes do padrão. Para o coerentismo, então, as crenças que representam conhecimento não jazem ao fim de uma cadeia fundada; elas preenchem um padrão coerente e são justificadas por preenchê-lo de uma forma apropriada.
Considere uma variante do caso. Suponha que eu parecesse ouvir música que não é do tipo que minha filha toca, nem do tipo que os vizinhos tocam, nem da espécie que eu esperaria de carros que passam. A proposição de que isto é o que eu ouço não é muito coerente com a crença de que a música é tocada por minha filha. Subitamente, eu recordo que ela estava trazendo um amigo e lembro que seu amigo gosta dessa música. Eu posso, agora, estar justificado em acreditar que minha filha está em casa. Quando eu finalmente ouço a sua voz, eu sei que ela está em casa. O ponto crucial aqui é como, inicialmente, um tipo de incoerência previne a justificação de minha crença que ela está em casa e como, enquanto as peças relevantes do padrão são desenvolvidas, eu me torno justificado em acreditar e (presumivelmente) chego a saber que ela está em casa. Chegar a uma crença justificada, desde esta perspectiva, parece-se mais com responder a uma questão olhando para informações diversas que sugerem a resposta do que com deduzir um teorema a partir de axiomas.
Exemplos como este mostram como um coerentismo holístico pode responder ao argumento do regresso sem abraçar a possibilidade de um círculo epistêmico (ainda que seus proponentes também não precisem rejeitá-lo). Isto pode indicar que não existem apenas os quatro tipos de cadeias epistêmicas possíveis que eu especifiquei. Há, aparentemente, outra possibilidade, geralmente desapercebida: a de que a cadeia termine com uma crença que é psicologicamente direta, mas epistemicamente indireta ou, se nós estamos falando do coerentismo sobre a justificação, justificacionalmente indireta. Assim, o último elo é, enquanto crença, direto, desde que é não-inferencial; ainda assim, enquanto conhecimento, é indireto, não no sentido usual de que é inferencial mas, antes, no amplo sentido de que a crença constitui conhecimento unicamente em virtude do suporte que recebe de outro conhecimento ou crença. Desse modo, minha crença de que há música tocando é psicologicamente direta, pois é simplesmente fundada, causalmente, em meu ouvir, não sendo (inferencialmente) baseada em qualquer outra crença; ainda assim, meu conhecimento de que há música não é epistemicamente direto. É epistemica, mas não inferencialmente, baseado na coerência de minha crença de que há música com minhas outras crenças, presumivelmente incluindo muitas que constituem, elas próprias, conhecimento. É, então, conhecimento através de, embora não por inferência a partir de, outro conhecimento - ou, ao menos, através de crenças justificadas; portanto, é epistemicamente indireto e, assim, não-fundacional.
Há outra forma de ver como este ataque ao argumento do regresso é construído. O coerentista concede que o elemento de crença em meu conhecimento é não-inferencialmente fundado na percepção e é, neste sentido, direto; mas a alegação é a de que a crença constitui conhecimento apenas em virtude da coerência com minhas outras crenças. A estratégia, então - chame-a a estratégia da cunha -, é romper a conexão que o fundacionismo usualmente coloca entre o psicológico e o epistêmico. Nos casos usuais, os fundacionistas tendem a sustentar, a base que se tem para o conhecimento de que p - digamos, uma experiência perceptiva - é também a base para a crença que se tem de que p; de forma semelhante, para a crença justificada, a base de sua justificação é também, usualmente, aquela da crença ela mesma. Para o coerentista que usa a estratégia da cunha, o fundamento epistemológico de uma crença não precisa ser um fundamento psicológico. Conhecimento e justificação são uma questão de quão bem o sistema de crenças funciona como um todo, não de quão bem fundadas as crenças estão - e elas podem, de fato, sustentar-se: pode-se ter um corpo de crenças justificadas, com ao menos algumas delas constituindo conhecimento, mesmo que nenhuma delas seja justificada por uma crença ou experiência na qual ela esteja psicologicamente fundada.
Em um sentido, naturalmente, o coerentismo postula um tipo de fundamento para a justificação e o conhecimento: a saber, a coerência. Porém, tanto quanto os coerentistas negam que a justificação e o conhecimento possam ser não-inferencialmente fundados na experiência ou na razão, este ponto mostra simplesmente que eles aceitam que a justificação e o conhecimento sejam baseados em algo (tenham propriedades supervenientes, como alguns colocariam). A justificação e o conhecimento permanecem fundados na coerência de elementos que, eles próprios, admitem justificação e derivam sua justificação (ou status enquanto conhecimento) desde a coerência com outros itens semelhantes, antes do que da fundação em elementos tais como impressões sensoriais (digamos, de música) os quais, embora não justificados ou injustificados por si mesmos, conferem justificação às crenças que eles fundamentam.
Aparentemente, então, a objeção da circularidade ao coerentismo pode ser enfrentada construindo a tese holisticamente e admitindo crenças psicologicamente diretas. Pode-se insistir em que, se uma crenças não-inferencial, portanto psicologicamente direta, constitui conhecimento, ela deve ser conhecimento direto. Mas os coerentistas responderiam que, nesse caso, haveriam dois tipos de conhecimento direto: o tipo que o fundacionista postula, o qual é derivado do estar fundado em uma fonte experimental ou racional básica, e o tipo que o coerentista postula, que é derivado da coerência com outras crenças, e não daquelas fontes. Esta é, seguramente, uma resposta plausível.
Está o coerentista holista tentando obter ambas as formas? Não necessariamente. O coerentismo holista pode conceder que uma variante do argumento do regresso aplica-se à crença, uma vez que o único tipo de cadeia inferencial de crença que é psicologicamente realista nos atribuir é o tipo que termina em crença (não-inferencial) direta. Mas mesmo com a suposição de que o conhecimento é constituído por (certo tipo de) crenças, não se segue que a crença direta que constitui o conhecimento é também conhecimento direto. Dependência epistêmica, nesta perspectiva, não implica em dependência inferencial ou psicológica; assim, uma crença não-inferencial pode depender, para seu status de conhecimento, de outras crenças. Desse modo, o coerentista pode conceder num tipo de fundacionismo psicológico - que diz (em parte) que, se nós temos quaisquer crenças, nós temos algum tipo de crença direta (não-inferencial) - mesmo negando o fundacionismo epistemológico, o qual requer que haja conhecimento que seja epistemicamente (e, normalmente, também psicologicamente) direto, se deve haver algum conhecimento. O coerentismo holístico pode conceder à experiência e à razão o status de fundamentos psicológicos de nosso sistema de crenças, mas ele nega que eles são as fontes básicas da justificação ou do conhecimento.


V. Fundacionismo, coerentismo e revogabilidade

Traçada a partir dos resultados acima, esta seção considera o quanto o fundacionismo falibilista e o coerentismo holista diferem e, relacionado com isto, o quanto a controvérsia é ocasionalmente obscurecida pelo fracasso em considerar as diferenças.
Há um tipo de caso que parece tanto favorecer o fundacionismo quanto mostrar algo sobre a justificação que o coerentismo, de alguma forma, omite. Pode parecer que as teorias da justificação coerenciais seriam decisivamente refutadas pela possibilidade de S ter, ainda que apenas momentaneamente, uma única crença que é, entretanto, justificada - digamos, a crença de que há música tocando. Pois essa crença iria estar justificada sem ser coerente com quaisquer outras crenças que S tenha. Porém, pode-se ter apenas uma única crença? Poderia eu, por exemplo, acreditar que há música tocando mesmo sem acreditar, digamos, que há (ou poderiam haver) instrumentos musicais, melodias e acordes? Não é claro que eu pudesse; e o fundacionismo não assume essa possibilidade, embora a teoria pudesse facilmente ser erradamente criticada por implicá-la. O fundacionismo é, de fato, coerente com um tipo de coerentismo - o coerentismo conceitual. Esta é uma teoria coerencial da aquisição de conceitos que diz que uma pessoa adquire conceitos, digamos, de peças musicais, apenas em relação com outros, e deve adquirir uma família inteira de conceitos relacionados a fim de adquirir qualquer conceito.
De toda forma, permanece questionável se minha justificação para acreditar que há música tocando deriva-se, em última instância, da coerência da crença com outras, i.e., se a coerência é, ainda que parcialmente, a base de minha justificativa para sustentar essa crença.[18] Deixe-nos, primeiro, destacar um ponto importante. Suponha que a crença revele-se incoerente com uma segunda crença, tal como minha crença de que eu estou diante da vitrola que está tocando música e, ainda assim, eu não vejo o movimento do prato; agora, a crença pode cessar de esta justificada uma vez que, se eu estivesse realmente ouvindo a vitrola, eu deveria estar vendo o seu prato movendo-se. Mas isto mostra apenas que a justificação da crença é revogável - sujeita a ser, ou desconsiderada (grosso modo, sobrepujada), ou enfraquecida -, podendo uma incoerência suficientemente séria levantar-se. Isto não mostra que a justificação deriva-se da coerência. Neste caso, a justificação de minha crença fundada em ouvir poderia ser desconsiderada. Minhas crenças melhor-justificadas, incluindo a crença de que uma vitrola com um prato imóvel não pode tocar, torna mais razoável para mim acreditar que não há música tocando na casa.
O exemplo levanta outra questão no que tange à possibilidade de que a coerência seja a fonte de minha justificação, enquanto oposta à incoerência que a refreia. Poderia a incoerência sobrepor-se à justificação de minha crença se eu não estivesse, independentemente, justificado em acreditar que uma proposição incoerente com certas outras é, ou provavelmente é, falsa, e.g. em acreditar que, se eu não vejo o prato mover-se, então eu não escuto música da vitrola? Pois, se careço de uma tal justificação independente, eu não poderia suspender meu julgamento sobre, ou mesmo rejeitar, as outras proposições e reter minha crença original? E não são as outras crenças ou proposições relevantes - aquelas que podem exceder ou revogar minha justificação - precisamente do tipo para o qual, direta ou inferencialmente, nós temos algum grau de justificação mediante fontes experimentais e racionais, tal como a percepção visual de um prato completamente imóvel? Note que o exemplo mostra que essas crenças ou proposições não precisam ser a priori; assim não está franqueado aos coerentistas alegar que apenas o a priori constitui uma exceção à tese de que a justificação é determinada pela coerência.
Uma questão semelhante levanta-se a propósito dos princípios cruciais eles mesmos. Poderia a incoerência jogar o papel revogador que ela desempenha se nós não tivéssemos um tipo de justificação fundacional para os princípios no sentido de que certos tipos de evidência ou crença sobrepõem-se à certos outros tipos? Mais geralmente, podemos nós utilizar, ou mesmo nos beneficiarmos de, considerações de coerência ao adquirir justificação, se nós não trazemos aos vários padrões coerentes ou incoerentes princípios não derivados daqueles padrões mesmos? Se, sem tais princípios para servir como modelos que guiam a formação de crenças e a revisão de crenças, nós pudermos nos tornar justificados pela coerência, então a coerência iria parecer estar jogando o tipo de papel generativo que as fontes fundacionais são sustentadas jogar ao produzir justificação. Alguém poderia tornar-se justificado em acreditar que p em virtude da coerência mesmo que não se tivesse princípios justificados pelos quais se pudesse, por exemplo, conectar inferencialmente a crença justificada que p com outra que com ela é coerente.
Existe um segundo caso, no qual a justificação que se tem é simplesmente enfraquecida: alguém cessa de estar justificado em acreditar na proposição em questão, embora não se torne justificado em crê-la falsa. Suponha que me pareça ver um gato preto, mas não mais pareça haver um gato ali se eu me movo cinco passos para a esquerda. Esta experiência poderia justificar minha crença, e levar-me a acreditar, que eu posso estar alucinando. Esta crença, por sua vez, é em certo grau incoerente com, e enfraquece a justificação de, minha crença visual de que o gato está ali, embora, por si mesma, não justifique minha crença de que não há um gato ali. Novamente, entretanto, eu estou aparentemente justificado, independentemente da coerência, em acreditar numa proposição relevante para minha justificação geral por uma crença perceptiva aparentemente fundacional: a saber, a proposição de que minha visão do gato é incoerente com minha mera alucinação dele. O mesmo parece sustentar-se para a proposição de que minha visão do gato é coerente com minha sensação de pêlo se eu estendo a mão para o ponto focal do felino em meu campo visual. Considerações como estas sugerem que a coerência tem o papel que ela desempenha na justificação apenas porque algumas crenças são justificadas independentemente dela.
Ambos exemplos ilustram uma distinção importante que freqüentemente é omitida.[19] É a distinção entre revogabilidade e dependência epistêmica ou, alternativamente, entre dependência epistêmica negativa, a qual é uma forma de revogabilidade, e a dependência epistêmica positiva, o tipo que as crenças têm com a(s) fonte(s) da(s) qual(is) elas derivam qualquer justificação que elas tenham ou, se elas representam conhecimento, seu status enquanto conhecimento. A revogabilidade da justificação de uma crença pela incoerência não implica em que, como os coerentistas sustentam, sua justificação dependa positivamente da coerência. Se meu jardim é minha fonte de alimento, eu dependo (positivamente) dele. O fato de que as pessoas poderiam envenenar o solo não faz de sua não-malevolência parte de minha fonte de alimento, nem implica numa dependência (positiva) dela, tal como a que tenho para com os raios do sol. Além disso, é a luz do sol (juntamente com a chuva e outras condições) que explica, tanto o meu ter a comida, quanto a quantidade dela que eu tenho. A não-malevolência é necessária para, mas não explica, isto; ela sozinha, mesmo sob as condições relevantes de potencial para o crescimento, nem mesmo tende a produzir comida.
Assim é com a experiência perceptiva enquanto uma fonte de justificação. Os fundacionistas não necessitam negar que a justificação de uma crença dependa negativamente de algo mais pois, como nós temos visto, eles não necessitam alegar que a justificação deva ser irrevogável. Ela pode surgir, sem o auxílio da coerência, de uma fonte como a percepção; ainda assim, ela permanece revogável desde várias direções - incluindo percepções conflitantes. A dependência negativa, entretanto, não implica a dependência positiva. A primeira é determinada pela ausência de algo - defeitos; a última é determinada pela presença de algo - justificadores. A justificação pode ser revogável pela incoerência, e assim sua desconsideração ou enfraquecimento poderiam se originar da incoerência, sem dever sua existência à coerência. O fundacionismo falibilista não é, então, uma mistura de coerentismo, e permanece em aberto exatamente que papel positivo, se algum, ele deve conceder à coerência para explicar a justificação.
Há ainda um outro ponto que o fundacionismo falibilista deveria acentuar, e ao avaliarmos o ponto nós aprendemos mais, tanto sobre o coerentismo quanto sobre a justificação. Se eu partir para mostrar que minha crença é justificada - assim como a formulação dialética do argumento do regresso convida a pensar no que a interrupção do regresso da justificação requer - eu tenho de citar proposições que são coerentes com aquela que se mostra justificada para mim, digamos, que há música em minha cada. Em alguns casos, sequer existem proposições nas quais já se acredite. Freqüentemente, ao defender a crença original, formam-se novas crenças, tais como a crença que se adquire, ao se mover a cabeça, de que se pode ver vividamente as mudanças de perspectiva que ocorrem na visão de um gato preto. Mais importante, essas crenças são altamente apropriadas para o processo de auto-conscientemente se justificar uma crença; e o resultado deste processo é duplo: forma uma crença de segunda-ordem de que a crença original está justificada e mostra que a última está justificada. Assim, a coerência é importante para mostrar que uma crença está justificada. Neste sentido limitado, a coerência é um elemento generalizado na justificação: é generalizado no processo de justificar, especialmente quando isto é feito como mostrando que se tem justificação.
Por que, todavia, crenças de segunda-ordem apropriadas para mostrar que uma crença está justificada deveriam ser necessárias para este estar justificado? Elas não precisam ser. De fato, por que deveria estar sequer implicado, dado que se tenha simplesmente uma crença justificada, que se poderia estar justificado em sustentar crenças de segunda-ordem apropriadas para mostrar que se está justificado? Pareceria que, exatamente como uma criança pequena pode ter um bom caráter, mesmo que seja inapta para defendê-lo contra ataques, pode-se ter uma crença justificada mesmo que, em resposta a alguém que duvida disso, não se pudesse mostrar que se tem. Supondo que eu tenha a sofisticação para formar uma crença de segunda-ordem de que minha crença de que há um gato diante de mim está justificada, a última crença pode ser justificada tanto quanto a primeira seja verdadeira; e pode ser verdadeiro que minha crença sobre o gato esteja justificada, mesmo que eu não esteja justificado para sustentá-la, ou seja inapto para mostrar que ela é verdadeira. Justificar uma crença de segunda-ordem é um processo sofisticado. O processo é particularmente sofisticado se a crença de segunda-ordem se refere à uma propriedade especial, tal como a justificação da crença original. Simplesmente estar justificado numa crença sobre, digamos, os sons ao redor, é um caso muito mais simples. Mas a confusão é fácil aqui, particularmente se o contexto determinante é uma dialética com um cético. Tome, por exemplo, a questão de como uma crença perceptiva simples “é justificada”. A frase mesma é ambígua. A questão poderia ser “Por que processo, digamos, de raciocínio, a crença tem sido (ou poderia ser) justificada?” ou, por outro lado, “Em virtude de que é justificada a crença?”. Estas são questões muito diferentes. A primeira convida-nos a conceber a justificação como um processo do qual a crença é a beneficiária; a segunda, a concebê-la como uma propriedade que a crença tem, seja em virtude de seu conteúdo, de sua gênese, ou de outras de suas características ou relações. Ambos os aspectos da noção são importantes mas, desafortunadamente, boa parte de nosso discurso sobre justificação torna fácil tomá-los conjuntamente. Uma crença justificada poderia ser uma que tenha justificação, ou uma que tenha sido justificada; e um pedido para a justificação de alguém poderia ser um pedido de um lista de fatores de justificação ou de uma recorrência do processo pelo qual a pessoa justificou a crença.
Uma vez que nós repudiemos os equívocos recém apontados, que argumento resta para mostrar a dependência (positiva) da justificação perceptiva sobre a coerência? Eu duvido que reste qualquer um, ainda que, dado o quão difícil é discernir o que é coerência, nós não possamos ficar confiantes em que nenhum argumento plausível esteja próximo. Admitido isto, poder-se-ia apontar a estranheza de dizer coisas tais como “Eu estou justificado em acreditar que há música tocando, mas eu não posso justificar esta crença.”. Por que seria isso estranho, senão por que, quando eu tenho uma crença justificada, eu posso dar uma justificação para ale apelando à crenças que são coerentes com ela? Porém, considere isto. Tipicamente, ao afirmar algo, digamos, que surgiram processos a partir de um acidente, eu sugiro que, de uma ou outra forma, eu posso justificar o que eu digo, especialmente se a crença que eu expresso é, como essa, não imaginada estar plausivelmente fundada em uma fonte básica tal como a percepção. Na sentença citada, eu nego que eu posso justificar o que eu afirmo. O fundacionista precisa explicar por que isto é estranho, dado que eu posso estar justificado em acreditar em proposições mesmo quando eu não posso mostrar que o estou (e posso nem mesmo acreditar que o estou). A principal idéia necessária para explicar isto é que, aparentemente, a afirmação de estar justificado em minha crença, antes mesmo do que o estar justificado, dá a aparência de que eu preciso estar apto para dar uma justificação da crença. Compare “Ela está justificada em acreditar que há música tocando mas (sendo um tipo de pessoa intuitiva e não-filosófica) ela não pode justificar essa proposição.”. Isto não tem uma estranheza perturbadora por que a pessoa dita ter justificação não é a que o afirma. Uma vez que nós podemos levar um choque ao sermos inquiridos para justificarmos a proposição e podemos não saber como justificá-la, esta afirmação pode ser verdadeira para ela. Nós não precisamos, entretanto, parar aqui. Existem ao menos mais duas questões.
Primeiro, há uma boa diferença entre mostrar que se está justificado e simplesmente dar uma justificação. Eu posso dar minha justificativa para acreditar que há música simplesmente indicando que eu a ouço. Mas isto não mostra que eu estou justificado, ao menos no sentido de “mostrar” usual em epistemologia. A tarefa requer, não apenas exibir o que justifica alguém, mas também indicar condições para estar justificado e mostrar que estas se apresentam. Uma coisa é citar uma justificativa, tal como uma percepção clara; mostrar que ela satisfaz um padrão suficientemente alto para ser uma justificativa da crença que ela funda é uma coisa completamente diferente. Certamente os céticos - e também, provavelmente, a maior parte dos coerentistas -, quando eles pedem por uma justificação, têm em mente algo mais semelhante ao último processo. De forma semelhante - e este é o segundo ponto - quando um regresso da justificação é, para o fundacionismo falibilista, detido pela apresentação de uma (genuína) justificação para a proposição em questão, e o problema do regresso pode ser considerado solúvel porque uma tal parada é possível, o cético não aprovará qualquer lugar de parada e, certamente, tampouco qualquer solução, que não seja dialeticamente defendido por um argumento que mostre que se está justificado.[20]
Seguramente pode ocorrer que, ao menos de forma típica, quando nós tenhamos uma crença justificada nós possamos dar uma justificativa para ela. Quando eu justificadamente acredito que há música tocando, eu seguramente posso dar uma justificativa: que eu a ouço. Mas eu não preciso acreditar que eu a ouço antes de que a questão da justificação seja levantada. Esta questão leva-me a enfocar as circunstâncias nas quais eu primeiro tinha uma crença unicamente sobre a música. Eu também tinha uma disposição, baseada em minha experiência auditiva, para formar a crença de que eu ouço a música e, em grande medida, é por isso que, no curso da justificação dessa crença, eu então formo a crença adicional de que eu a ouço. Mas uma disposição para acreditar em algo não implica numa crença efetiva nesse algo, nem mesmo numa crença disposicional, enquanto oposta à uma que se manifesta a si mesma na consciência. Se eu estou falando alto e excitadamente em um restaurante, eu posso estar disposto a acreditar nisto - tanto que, se eu meramente pensar na proposição de que estou falando alto, formarei a crença de que o estou e diminuirei minha voz. Mas essa disposição não implica em que eu acredite nessa proposição - se o fizesse eu não estaria, em primeiro lugar, falando alto. No caso da música, eu tendo a formar a crença de que eu a ouço se, enquanto a ouço, a questão de se a ouço se levanta; eu não preciso ter, sequer subliminarmente, acreditado nisso até então. A justificação que ofereço, assim, não é oferecida por meio do apelo à coerência com outras crenças que eu já tenho - tal como a de que vejo o prato mover-se -, mas pela referência ao que tem sido tradicionalmente considerado como uma fonte básica, tanto da justificação, quanto do conhecimento: a percepção. É este precisamente o tipo de justificação que os fundacionistas considerarão apropriado para uma crença não-inferencial. De fato, uma consideração que favorece o fundacionismo, tanto acerca da justificação quanto acerca do conhecimento - ao menos como uma descrição de nossas práticas epistêmicas cotidianas, incluindo boa parte da prática científica -, é que nós deixamos de oferecer justificação ou de defender uma alegação de conhecimento precisamente quando alcançamos uma fonte básica.


VI Coerência, fundações e justificação

Há muito mais a dizer para esclarecer, seja o fundacionismo, seja o coerentismo. Porém, se o que eu disse até aqui está correto, nós podemos compreender ao menos seus impulsos básicos. Nós também podemos ver como o coerentismo pode responder ao argumento do regresso - em parte ao distinguir entre imediaticidade psicológica e imediaticidade epistêmica. E podemos ver como o fundacionismo pode responder à acusação de que, uma vez tornado moderado o suficiente para ser plausível, ele depende antes de critérios de coerência do que de um fundamento na experiência ou na razão. A resposta é, em parte, distinguir entre dependência epistêmica negativa e dependência epistêmica positiva e argumentar que o fundacionismo não faz a justificação depender positivamente da coerência, mas apenas negativamente sobre (e evitando) a incoerência.
Pode perguntar ainda, entretanto, se o fundacionismo falibilista concede o suficiente ao coerentismo. Embora reconhecendo que ele não precisa restringir o papel da coerência mais do que é requerido pelo argumento do regresso, ele ainda nega que a coerência seja (independentemente) necessária para a justificação. Tal como mais plausivelmente desenvolvido, o fundacionismo falibilista também nega que a coerência seja a fonte básica (não-derivativa) da justificação - ou, ao menos, que, se ela o for, ela possa produzir justificação suficiente para tornar uma crença desqualificadamente justificada ou (dada a verdade e certas outras condições) para torná-la conhecimento. Uma única gota, mesmo da mais pura água, não irá saciar uma sede. O coerentismo holista acima formulado tem paralelo nisto: embora ele possa garantir ao fundacionismo sua imagem psicológica típica acerca de como os sistemas de crença são estruturados, ele nega que a justificação fundacional seja (independentemente) necessária para a justificação e que ela seja uma fonte básica de justificação exceto, possivelmente, em um grau de justificação demasiado pequeno para o conhecimento ou a crença desqualificadamente justificada.
O ponto importante aqui é a diferença entre as duas concepções de justificação. Grosso modo, as fundacionistas tendem a sustentar que a justificação pertence a uma crença, inferencial ou diretamente, em virtude de seu fundamento na experiência ou na razão; os coerentistas tendem a sustentar que a justificação pertence a uma crença em virtude de sua coerência com uma ou mais outras crenças. Esta é, aparentemente, uma diferença referente as fontes básicas. Sem dúvida, minha formulação pode fazer o coerentismo soar fundacionista, pois a justificação é fundada, não em relações inferenciais com premissas, mas na coerência ela mesma, a qual soa como um paralelo da experiência ou da razão. Porém, note três contrastes com o fundacionismo: (1) a fonte da coerência é cognitiva, pois a coerência é uma propriedade interna do sistema de crenças, enquanto o fundacionismo não impõe uma tal restrição; (2) a coerência é um gerador inferencial ou, ao menos, epistêmico, no sentido de que ela aprece, tenha-se ou não crenças inferenciais, de relações entre crenças ou seus objetos proposicionais, e.g. da implicação, sustentação dedutiva ou explicação de uma crença ou proposição por outra, enquanto que as fontes experimentais e (para os coerentistas puros) mesmo as fontes racionais são geradores não-inferenciais de crenças (estas fontes podem produzir e, desse modo, explicar a crença mas, de acordo com o coerentismo, elas não a justificam); (3) S tem acesso inferencial à relações produtoras-de-coerência: S pode manejá-las ao justificar inferencialmente a crença de que p, enquanto o fundacionismo não requer um tal acesso às suas fontes básicas. Ainda assim, eu quero investigar o quão profunda é a diferença entre o fundacionismo e o coerentismo; pois, uma vez que o fundacionismo é moderadamente expresso e concede a verdade ao coerentismo conceitual, e uma vez que o coerentismo seja (plausivelmente) construído como consistente com o fundacionismo psicológico, pode parecer que as perspectivas diferem muito menos do que os estereótipos em voga nos levariam a pensar.
Ajudaria se nós primeiro contrastássemos o fundacionismo falibilista com o fundacionismo forte e comparássemos suas relações com o coerentismo.  Se nós usarmos a versão de Descartes como um modelo, o fundacionismo forte é dedutivista, toma as crenças fundacionais enquanto irrevogavelmente justificadas, e atribui à coerência, no melhor dos casos, um papel gerador limitado. Para encontrar estas condições, ele pode reduzir as fontes básicas de justificação à razão e à alguma forma de introspecção. Além disso, estando comprometido com a irrevogabilidade da justificação fundacional, não concederia que a incoerência possa frustrar uma tal justificação. Iria conceder aos coerentistas - e a qualquer princípio de independência que eles apoiassem -, no melhor dos caso, um papel positivo mínimo, digamos, insistindo que, se uma crença é sustentada por duas ou mais crenças independentes que são coerentes entre si, sua justificação é aumentada quando muito “aditivamente”, isto é, apenas pela combinação da justificação transmitida separadamente por cada uma das fontes básicas relevantes.
Em contraste, o que o fundacionismo falibilista nega no tocante à coerência é, apenas, que ela seja uma fonte básica (portanto, suficiente) de justificação. Desse modo a coerência, por si mesma, não fundamenta a justificação e, por isso, o princípio de independência não se aplica às fontes que não tem justificação; quando muito, o princípio permite à coerência levantar o nível da justificação originalmente tirada de outras fontes até um nível mais elevado do que aquele que ela alcançaria se aquelas fontes não fossem mutuamente coerentes. De forma semelhante, se a inferência é uma fonte básica de coerência (como alguns coerentistas parecem acreditar), ela não é uma fonte básica de justificação. Ela pode acentuar a justificação, como quando se fortalece a justificação de uma pessoa para acreditar no testemunho de alguém ao se inferir o mesmo ponto de outra pessoa. Mas a inferência sozinha não gera justificação. Suponha que eu acredite em várias proposições sem qualquer vestígio de evidência e apenas através de um pensamento desejoso. Eu poderia inferir qualquer número de outras proposições; mesmo que, com boa sorte, eu chegasse até um conjunto de crenças altamente coerentes, eu não obteria, automaticamente, justificação para acreditar em quaisquer delas. Se eu estou boiando no meio do oceano, fortalecer o meu barco acrescentando-lhe pranchas e pregos pode torná-lo mais firme e, por isso, fazer-me sentir seguro; porém, se nada indica minha localização, não há razão para esperar que este trabalho irá me levar para mais perto da costa. Seguramente, a coerência pode tornar-me apto à traçar um belo mapa; porém, se não há experiência com as quais eu possa contar para conectar-me com a realidade, eu posso prosseguir eternamente em vão. Mesmo para estar justificado em acreditar que ele irá ter correspondência com a realidade, eu preciso ter alguma fonte experimental a partir da qual trabalhar.
Uma resposta coerentista natural é que, quando nós consideramos exemplos de crença justificada, nós não apenas sempre encontramos alguma coerência mas nós também encontramos, aparentemente, o tipo certo à considerar para a justificação. Esta resposta é especialmente plausível se - como eu sugiro ser razoável - o coerentismo tal como é usualmente formulado for modificado para incluir, na base da coerência, disposições para acreditar. Considere minha crença de que a música está tocando. Ela é coerente com minha crenças sobre quais discos estão em casa, que música minha filha prefere, minhas capacidades auditivas, etc., e com muitas de minhas disposições para acreditar, digamos, para formar a crença de que ninguém mais na casa tocaria essa música. Uma vez que tais disposições podem, elas mesmas, estarem bem fundadas, digamos, na percepção, ou escassamente fundadas, e.g. no preconceito, elas admitem justificação e, quando elas produzem crenças, podem levar à inferências razoáveis. Assim, essas disposições são apropriadas para a base da coerência, e incluí-las entre os geradores de coerência é particularmente útil para liberar o coerentismo de, implausivelmente, colocar todas as crenças necessárias para as capacidades justificacionais que ele tende a tomas como subjacentes à crença justificada. Nós não precisamos “estocar” crenças em todas as proposições necessárias para nosso próprio sistema de crenças justificadas; a disposição para acreditar nelas é suficiente. Dada esta ampla concepção de coerência, é seguramente plausível tomar a coerência como, ao menos, necessária para a crença justificada. E pode ser argüido que sua justificação está baseada na coerência, não na experiência.
Deixe-nos admitir que tanto o caso da música exibe um alto grau de coerência entre minhas crenças e disposições para acreditar, quanto a coerência é necessária para a justificação de minha crença. Não se segue que a justificação esteja baseada na coerência. A coerência poderia ainda ser, quando muito, uma condição conseqüencial necessária da justificação, uma que seja sustentada como um resultado da justificação ela mesma, ou que esteja baseada, enquanto oposta a uma condição constitutiva necessária, sobre uma que, ou expresse parte do que é para uma crença estar justificada, ou constitua uma fonte básica da mesma. A relação da coerência com as fontes que a produzem podem ser análogas àquela do calor com a fricção: é um produto necessário, mas não uma parte do que o constitui.
Se a coerência é uma condição constitutiva necessária da justificação e, especialmente, se ela é uma fonte dela, podemos esperar encontrar casos nos quais as fontes racionais e experimentais estejam ausentes e, ainda assim, haja coerência suficiente para a crença justificada. Mas isso é precisamente o que nós não encontramos facilmente, se é que alguma vez encontramos. Se eu descubro um conjunto de crenças que intuitivamente são muito coerentes, mas que não recebem o suporte daquilo em que eu acredito (ou, ao menos, estou disposto a acreditar) sobre as bases da experiência ou da razão, e não fico inclinado a atribuir justificação à quaisquer delas. Certamente, se a unidade de coerência é larga o suficiente para incluir minhas crenças efetivas, então, uma vez que eu tenho tantas crenças que estão fundadas na experiência ou na razão (de fato, poucas não o são), eu quase certamente não irei, de fato, ter quaisquer crenças que intuitivamente pareçam justificadas ainda que não sejam coerentes com algumas de minhas crenças assim fundadas. Isto complica a avaliação do papel da coerência na justificação. Mas nós certamente podemos imaginar seres (ou nós mesmo) artificialmente dotados de conjuntos de crenças coerentes não fundados na experiência ou na razão; e quando nós o fazemos, pare que a coerência não confere, automaticamente, a justificação.
Alguém poderia concluir, então, que é mais provavelmente verdadeiro que a coerência esteja baseada na justificação (ou no que quer que confira a justificação) do que que a última esteja baseada na primeira. Além disso, os dados que nós consideramos até agora podem ser explicados pela hipótese de que, tanto a coerência entre as crenças, quanto a sua justificação repousam em que as crenças estejam fundadas (de uma forma adequada) em fontes básicas. Pois, particularmente se uma teoria da coerência da aquisição de conceitos é verdadeira, uma pessoa talvez pudesse não ter uma crença justificada por uma fonte básica sem ter crenças - ou, ao menos, disposições para acreditar - relacionadas de uma forma íntima (e intuitivamente geradoras-de-coerência) com essa crença. Certamente, não se pode ter uma crença justificada a menos que nenhuma incoerência frustre sua justificação. Dados estes dois pontos, é esperado que em um fundacionismo falibilista a justificação normalmente implicará a coerência, tanto no sentido positivo que envolve o suporte mútuo, quanto no sentido fraco da ausência de incoerência potencial. Há alguma razão para pensar, então, que a coerência não é uma fonte básica de justificação sendo, quando muito, uma importante condição necessária para ela.
Há, entretanto, ao menos uma possibilidade a mais para ser examinada: a de que dada a justificação desde fontes fundacionais, a coerência poderia gerar mais justificação do que S teria daquelas fontes apenas. Se é assim, nós poderíamos chamar a coerência de uma fonte condicionalmente básica dado que, ali onde já há alguma justificação de outras fontes, ela pode produzir nova justificação. Isto tem a ver com a interpretação do princípio de independência. Há ampla concordância em que nossa justificação aumenta marcadamente quando nós tomamos em consideração fontes de evidência independentes, como quando eu confirmo que está tocando música aproximando-me para acentuar minha impressão auditiva e para confirmar visualmente que uma vitrola está tocando. Talvez o que explique o dramático aumento de minha justificação aqui seja, não apenas a “aditividade” da justificação fundacional, mas também a coerência como uma fonte adicional de justificação.
Há plausibilidade nesse raciocínio, mas ele não é cogente. Em primeiro lugar, não há realmente tais quantidades aditivas de justificação. Talvez nós simplesmente combinemos graus de justificação, tanto quanto possamos, em analogia com combinações de probabilidades independentes. Assim, a probabilidade de dar ao menos uma “cara” em duas jogadas honestas de uma moeda não é de ½ + ½ (as duas probabilidades independentes), o que daria ao evento a probabilidade de 1, tornando-o certo; a probabilidade é de ¾, i.e., 1 menos a probabilidade de duas “coroas”, a qual é de ¼. Até onde os graus de justificação são quantificáveis, eles se combinam de forma semelhante. Além disso, as regras relevantes de probabilidades não parecem depender da coerência; elas parecem ser justificáveis por um raciocínio a priori da forma em que crenças fundadas na razão são comumente pensadas serem justificadas, e elas parecem estar entre os princípios que se deve pressupor se vai-se considerar como a coerência contribui para a justificação. A analogia (limitada) entre probabilidade e justificação não favorece, então, o coerentismo, e pode bem favorecer o fundacionismo.
Resta um contraste entre, digamos, ter seis testemunhas de crédito independentes dizendo-me que p em ocasiões separadas e que eu não coloco em contato umas com as outras, e tê-las fazendo isso em uma única ocasião, quando eu noto a coerência de suas histórias. No primeiro caso, embora minhas crenças isoladas sejam coerentes, eu não tenho a crença de que elas o fazem, nem mesmo a impressão de seu peso coletivo. Este não é, certamente, um caso de seis incrementos de justificação fundacional isolada versus uma caso de seis itens de evidência coerentes. Ambos os casos exibem coerência; porém, no segundo, há uma crença adicional (ou uma disposição justificada para acreditar): que seis testemunhas independentes concordam. Os fundacionistas podem, tão bem quanto os coerentistas, explicar plausivelmente como essa crença adicional aumenta a justificação que se tinha no primeiro caso. Seria prematuro, então, tomar casos como este para mostrar que a coerência sequer é uma fonte condicionalmente básica de justificação. Ela pode apenas refletir outras fontes de justificação, antes do que contribuir com uma qualquer.


VII. O dogmatismo epistemológico e as fontes da justificação

Dentre os problemas que restam para compreender a controvérsia fundacionismo-coerentismo, o mais prontamente esclarecido pelos resultados deste capítulo é a objeção de dogmatismo. Isto pode ser expresso como segue. Se uma pessoa pudesse ter conhecimento ou crença justificada sem estar apta para mostrar isso, e mesmo sem dispor de uma premissa desde a qual derivá-lo, então o caminho estaria aberto para se afirmar quase tudo o que se quisesse, arrogantemente defendendo-se assinalando que se pode estar justificado sem estar-se apto para mostrar-se estar. Dada a concepção da controvérsia fundacionismo-coerentismo desenvolvida aqui, nós podemos, talvez, jogar uma nova luz sobre o quanto a acusação de dogmatismo é relevante para cada posição.
Não é fácil caracterizar a noção de dogmatismo e, aparentemente, têm havido poucas discussões detalhadas sobre ela na literatura epistemológica recente.[21] Meu foco será o dogmatismo enquanto uma atitude ou postura epistemológica, não como um traço de personalidade. Eu estou interessado principalmente no que é sustentar dogmaticamente uma crença, Esta é, provavelmente, a noção básica em qualquer caso: uma atitude dogmática geral, como o traço de personalidade de dogmatismo é, seguramente, de alguma maneira, uma questão de ter ou de tender a ter sustentado crenças dogmaticamente.[22]
Será útil começar com alguns contrastes. Dogmatismo em relação a uma crença não é equivalente à obstinação em sustentá-la; pois, mesmo que uma crença dogmaticamente sustentada não possa ser facilmente abandonada, pode-se estar obstinado em sustentar uma crença simplesmente pela ligação com ela, e sem a requerida disposição para defendê-la ou considerá-la como melhor fundamentada do que as alternativas. Por razões semelhantes, a certeza psicológica em sustentar uma crença não implica em dogmatismo. De fato, mesmo que se esteja, tanto psicologicamente certo de uma verdade lógica simples, quanto disposto a rejeitar negações dela com confiança e até mesmo suspeitar de argumento bem desenvolvidos contra ela como sofísticos, uma pessoa não se qualifica como dogmática. O conteúdo da perspectiva de uma pessoa é importante: mesmo a insistência moderada sobre questões razoavelmente disputadas pode sugerir dogmatismo; a aderência obstinada à auto-evidência não precisa faze-lo. Uma atitude que seria dogmática ao sustentar uma crença pode não sê-lo ao sustentar outra.
Pessoas dogmáticas têm, freqüentemente, as mentes fechadas, e crenças dogmaticamente sustentadas o são, freqüentemente, por pessoas de mente fechada; mas uma crença sustentada como a mente fechada não precisa ser sustentada dogmaticamente: ela pode ser mantida com uma compreensão culpada de que, emocionalmente, não se pode ficar a escutar desafios a ela, e com uma consciência de que ela pode estar equivocada. Além disso, embora as pessoas que sustentem crenças de forma dogmática estejam, freqüentemente, dispostas a lutar intelectualmente para defendê-las, e mesmo para tentar ganhar adeptos para ela, uma tal luta não é suficiente para caracterizar o dogmatismo. O belicismo intelectual é consistente com uma consciência aguda de que se pode estar equivocado, e pode ser acompanhado pela argumentação de mente aberta por uma perspectiva. Tampouco necessita uma crença dogmaticamente sustentada gerar um semelhante belicismo. Eu posso estar pouco inclinado à discutir, seja a partir da confiança de que eu sei, seja a partir do temperamento, e meu dogmatismo pode vir à tona apenas quando sou desafiado.
Uma coisa que todas estas possíveis concepções de dogmatismo têm em comum é a falta de um componente de segunda-ordem. Porém, esse componente pode bem ser necessário para uma atitude dogmática ou, ao menos, para uma do tipo “sangue-puro”. Tipicamente, uma crença sustentada de forma dogmática é mantida com uma convicção (freqüentemente injustificada) de que se está certo, e.g. de que se sabe, se está amplamente justificado, se está apropriadamente seguro, ou simplesmente se possa ver a verdade da proposição em questão. Uma tal crença de segunda-ordem é insuficiente, entretanto, para caracterizar uma atitude dogmática. Isto é mostrado por certos casos de crença em verdades lógicas simples. Estas podem ser sustentadas, tanto com uma tal crença de segunda-ordem, quanto na forma obstinada típica de uma atitude dogmática e, ainda assim, não sugerir uma atitude dogmática. Poderia ser sustentado que, nesse caso, elas iriam, ao menos, ser dogmaticamente sustentadas; mas, se a tenacidade imaginada diz respeito, digamos, ao princípio de que se a=b, e b=c, então a=c, não se poderia chamar propriamente a atitude de dogmática, e nós deveríamos antes falar de manter firmemente a crença do que de mantê-la dogmaticamente.
Pode ser argumentado, entretanto, que mesmo que os únicos exemplos de dogmatismo até aqui ilustrado sejam de segunda-ordem, existem, entretanto, dois tipos de dogmatismo: de primeira e de segunda-ordem. Pode ser suficiente, por exemplo, que alguém esteja disposto a ter uma certa crença, usualmente uma crença injustificadamente positiva, sobre o status da crença de que p. Imagine que Tom pense que Mozart é um compositor muito maior do que Haydn, afirme-o sem dar qualquer argumento, e dispense argumentos contrários. Se ele não acredita, mas está disposto a acreditar ao considerar a questão, que sua crença é, digamos, obviamente correta, então ele pode ser qualificado como sustentando-a dogmaticamente. Aqui, então, não existe uma verdadeira atitude de segunda-ordem, mas apenas uma disposição para formar uma sobre a consideração do status da crença de uma pessoa. Eu quero conceder que este tipo de modelo de primeira-ordem pode ser qualificado como dogmatismo; mas a consideração dele permanece como um tipo de segunda-ordem, e ainda parece que os outros casos de primeira-ordem que nós consideramos, tal como a mera obstinação em acreditar, não são casos de dogmatismo. Eles podem exibir um acreditar dogmaticamente, mas isto não implica dogmatismo como uma atitude epistêmica ou um traço de caráter, não mais do que fazer algo amorosamente implica numa atitude amorosa, ou em ser uma pessoa amorosa. Parece, então, que ao menos os casos claros de sustentar crenças dogmaticamente implicam, ou atitudes de segunda-ordem, ou certas disposições para formá-las.
Podem não haver formas simples, iluminadoras, de caracterizar o dogmatismo com respeito à crença de que p; porém, se há, os seguintes elementos deveriam ser revelados, ao menos como condições típicas, e deveriam prover os materiais necessários para avaliar a controvérsia fundacionismo-coerentismo: (1) a confiança de que p, e a confiança significativamente maior de que se tem evidência ou fundamentos para a justificação; (2) a resistência injustificada à tomar objeções plausíveis seriamente quando elas são inteligivelmente colocadas para alguém; (3) uma disposição ou, ao menos, uma tendência para afirmar a proposição com a máxima capacidade, mesmo na presença de razões presumíveis para questioná-la, incluindo simplesmente as perspectivas conflitivas e uma ou mais pessoas que S vê ou deveria ver serem competentes no que concerne ao tema; e (4) uma crença (de segunda-ordem), ou disposição para crer, que a crença de alguém é claramente verdadeira (ou certamente verdadeira). Note, no entanto, que (i) a confiança excessiva pode vir da mera imprudência e pode ser totalmente instável; (ii) a resistência à objeções plausíveis pode ser devida à preguiça intelectual; (iii) uma tendência para afirmar algo com a máxima capacidade pode ser derivada do mero embotamento; e (iv) uma crença de que se está certo pode provir, não do dogmatismo, mas meramente da presunção, do equívoco intelectual (tal como um anti-ceticismo fácil) ou do puro erro. Note-se, ainda, que a noção de dogmatismo não é apenas psicológica, mas é também epistêmica.
Dos quatro elementos muito característicos do dogmatismo, o último pode, sob melhor alegação, ser qualificado como uma condição desqualificadamente necessária, e talvez um ou mais dos outros sejam necessários. Os quatro são, como um todo, provavelmente suficientes; porém, isto não é auto-evidente, e eu certamente duvido de que nós possamos encontrar qualquer condição simples que seja não-trivialmente suficiente, tal como acreditar que se sabe, ou que se está justificado em acreditar, que p (que alguém acredita), enquanto também acredita que não se tenha razões para acreditar que p.[23] Essa condição não é suficiente porque poderia provir de uma certa perspectiva do conhecimento e de razões, digamos, uma perspectiva segundo a qual nunca se tem razões (enquanto opostas à bases) para acreditar em proposições simples e auto-evidentes. A condição também parece insuficiente porque ela poderia ser satisfeita por uma pessoa que carece das primeiras três condições recém-especificadas.
Deixe-nos trabalhar com a concepção “puro-sangue” de uma crença dogmaticamente sustentada, sumariada pelas condições (1)-(4). O que, então, podemos dizer sobre a acusação padrão de que o fundacionismo é dogmático, no sentido de que ele implica em convidar seus proponentes a sustentar dogmaticamente certas crenças? Esta acusação tem sido levantada em várias ocasiões,[24] e algumas respostas plausíveis têm sido dadas.[25] Dadas as seções anteriores deste trabalho, deveria ser claro que a acusação é mais provável de parecer cogente se o fundacionismo é concebido como respondendo ao problema do regresso dialético, assim como ele tem sido aparentemente tomado por, e.g., Chisholm.[26] Pois, neste caso, um lugar de parada (doxástica) no regresso gerado pelo “Como você sabe que p?” irá coincidir com a asserção de uma crença de segunda-ordem, tal como a de que eu sei que p, e.g. que há uma janela diante de mim; e, uma vez que as alegações de conhecimento são comumente justificáveis pela evidência, deter completamente o regresso dessa forma parecerá dogmático. Mesmo que uma tal alegação seja justificada pela citação de alguém de um estado de coisas não-doxástico, tal como uma experiência visual de uma janela, estar-se-á ainda afirmando a existência desse estado de coisas e, portanto, aparentemente expressando conhecimento: fazendo o que parece uma alegação tácita sobre ela, embora não alegando verdadeiramente tê-la.
Nós podemos formular vários fundacionismo de segunda-ordem, por exemplo, um que diz que, se S sabe algo, então existe alguma coisa que S sabe diretamente que S sabe. Mas um fundacionista não necessita sustentar uma tal perspectiva, e não o faria aquele que está comprometido em manter que muitos tipos de crença constituem tais fundações conhecíveis, i.e., são conhecimento que se pode saber que se tem, ou que toda cadeia epistêmica termina nelas. Em qualquer caso, os fundacionistas moderados não estarão inclinados a sustentar um fundacionismo de segunda-ordem, mesmo que eles pensem que nós de fato temos algum conhecimento de segunda-ordem. Em primeiro lugar, se crenças fundacionais são apenas revogavelmente justificadas, é provável que seja muito difícil saber que elas estão justificadas, porque isto requer garantia para atribuir certos fundamentos à crença, e pode também requerer justificação para acreditar que certos revogadores estão ausentes. Isto não implica em negar que existam certos tipos de conhecimento que se pode, sem ter evidência para isso, garantida e não-dogmaticamente dizer que se tenha, por exemplo, quando o conhecimento de primeira ordem é o de uma simples proposição auto-evidente. Minha questão é que o fundacionismo como tal, ao menos em versões moderadas, não necessita tomar um tal conhecimento (ou justificação) de segunda-ordem como uma condição para a existência do conhecimento (ou da justificação) em geral. [27]
Se nós levantamos o problema do regresso na forma estrutural, há muito menos tentação em considerar o fundacionismo como dogmático. Não há então a presunção de que, com respeito a qualquer coisa que eu sei, eu sei não-inferencialmente que eu a sei (e similarmente para a justificação). É claro que, desde a suposição de que de modo geral eu estou habilitado, sem oferecer evidência, a afirmar o que eu conheço diretamente, pode parecer que mesmo o fundacionismo moderado justifica-me a sustentar - e expressar - crenças dogmaticamente. Mas isto é um equívoco. Existe uma diferença considerável entre o que eu sei, ou justificadamente acredito, e o que eu posso garantidamente afirmar sem evidência. É, e.g., aparentemente consistente com saber que p, digamos, que há música tocando, que eu tenha alguma razão para duvidar que p: eu certamente posso ter razão para pensar que os outros duvidam disto, e que eles não deveriam falar como se suas objeções pudessem não importar. Assim, eu posso saber, por meio de minha própria boa audição, que p, mesmo não estando garantido em saber que eu o sei, e garantido, apenas com moderada confiança, até mesmo para simplesmente dizer isto é verdadeiro. Aqui “Isto é verdadeiro” iria expressar, mas não reivindicar, meu conhecimento; “Eu o sei” reivindica explicitamente conhecimento, e normalmente implica em que eu tenha justificação para crenças a respeito de meus fundamentos objetivos, não apenas a respeito de meu próprio estado cognitivo e perceptivo.
Nada dito aqui implica que não se possa estar justificado em acreditar no que se sustenta dogmaticamente. Que a atitude de uma pessoa em sustentar que p não esteja justificada, não implica que sustentar que p seja em si mesmo não justificado. Pode ser possível, dado tudo o que tenho dito, que em certos casos pode-se até mesmo estar justificado, de forma geral, em tomar uma atitude dogmática em relação a certas proposições. Isto dependerá, entre outras coisas, da plausibilidade da proposição em questão e do nível de justificação que se tem para acreditar que se está correto. Porém, de forma típica, atitudes dogmáticas não são justificadas e o fundacionismo moderado, longe de implicar qualquer outra coisa, pode prontamente explicar isto.
Além disso, uma vez que a revogabilidade de crenças fundacionais seja apreciada, então, mesmo que se pense que se possa afirmar as proposições em questão sem oferecer evidências, não tomar-se-ão as atitudes ou outras instâncias requeridas para sustentar dogmaticamente uma crença. Como o exemplo de minha crença sobre a música ilustra, a maior parte do tempo uma pessoa está provavelmente aberta ao contra-argumento e ela pode não estar realmente mais confiante do que a garantia do fundamento que ela tem. Por certo, o falibilismo sozinho, mesmo quando fundamentado em uma apreciação apropriada da revogabilidade, não impede o dogmatismo no que se refere à muitas das crenças que se tenha. Mas ele ajuda a dirigir para esse fim, e é natural para os fundacionistas moderados sustentar uma perspectiva falibilista a propósito de suas crenças, especialmente suas crenças empíricas, e mantê-la em mente estruturando uma concepção geral da experiência humana.
Se o fundacionismo tem sido acriticamente pensado encorajar o dogmatismo, o coerentismo tem freqüentemente sido tomado promover a abertura intelectual. Mas esta segunda concepção estereotipada pode não ser melhor justificada do que a primeira. Muito depende, naturalmente, do tipo de coerentismo e do temperamento de seu proponente. Deixem-nos considerar cada um destes pontos.
O que faz o coerentismo parecer promover a tolerância é, precisamente, o que nos leva a perguntar como ele pode dar conta do conhecimento (ao menos em uma teoria da verdade da coerência). Pois, como os coerentistas amplamente concedem, existe um número indefinido de sistemas de crenças coerentes que as pessoas podem, em princípio, ter; por isso, supor que o meu sistema incorpora conhecimento e, assim, verdade, ou mesmo justificação - e assim uma presunção de verdade - enquanto o seu não o faz é, prima facie, injustificado. Porém, no momento em que a perspectiva é desenvolvida para produzir uma possível descrição do conhecimento do mundo (uma noção externa), digamos, requerendo um papel para as crenças de observação e outras crenças cognitivamente espontâneas, tal como alguns coerentistas fazem,, ou requerendo crenças aceitas na base de um desejo para acreditar na verdade e evitar o erro, como outros o fazem,[28] torna-se fácil pensar - e pode-se estar justificado em pensar - que as crenças de uma pessoa constituem conhecimento, ou estão mais provavelmente justificadas do que as de outra pessoa, especialmente se a(s) outra(s) pessoa(s) sustenta(m) perspectivas incompatíveis para com aquelas. De fato, embora o coerentismo torne fácil ver como um contra-argumento pode ser lançado desde uma ampla variedade de pontos-de-vista opostos, ele também provê menos na forma em que os apelos fundacionais pelos quais os debates podem ser colocados - e as pretensões invalidadas. Se é provavelmente menos dogmático quando se pensa que se pode sempre encontrar a oposição razoável de uma pessoa com um sistema coerente de crenças diferente, certo ou errado, do que quando acredita-se poder ser decisivamente mostrado estar-se equivocado através do apelo a fontes fundacionais de conhecimento e justificação? A resposta não é clara em qualquer caso dado, dependerá de um certo número de variáveis, incluindo o temperamento do sujeito e das proposições em questão. E não poderia minha confiança de que, usando um ou outro recurso da coerência, eu poderia sempre continuar a argumentar por minha perspectiva gerar uma confiança exagerada, tanto quanto o meu pensamento de que eu (revogavelmente) conheço algo através da experiência ou da razão? De fato, se a coerência é uma noção tão vaga quanto parece, parece bastante possível, tanto exagerar na extensão do suporte que se tem para as próprias crenças, quanto subestimar o grau de coerência que suporta uma crença oposta. Resulta que o coerentismo também pode produzir dogmatismo, mesmo que seus proponentes tenham tendido a estar menos inclinados em direção a ele do que alguns fundacionistas.
Se tem havido uma tal inclinação menor, ela pode ser devida ao temperamento, incluindo talvez uma maior simpatia para com o ceticismo, tanto quanto os compromissos teóricos. Em todo caso, se alguém sustenta dogmaticamente algumas de suas crenças, isto depende significativamente de se alguém é dogmático em temperamento ou em certos segmentos dos pontos-de-vista da pessoa. Pode ser que a tendência a buscar justificação em padrões amplos seja mais forte nos coerentistas do que nos fundacionistas, e que os últimos tendam mais do que os primeiros a procurá-la, ao contrário, em cadeias de argumentos ou de inferências. Se é assim, isto poderia explicar uma diferença sistemática no grau de dogmatismo encontrado nas duas tradições. Porém, estas tendências estão apenas contingentemente conectadas com as respectivas teorias. O fundacionismo pode levar em conta a importância para a justificação de largos padrões, e os coerentistas comumente concebem o argumento e a inferência como as fontes principais da coerência. Uma pessoa pode também tornar-se dogmática ao insistir que um padrão é decisivo na justificação, assim como se pode dogmaticamente afirmar que uma simples crença perceptiva é incontroversivelmente verídica.
Uma fonte de acusação de dogmatismo, ao menos tal como adiantada pelos filósofos é, naturalmente, a impressão de que o ceticismo está sendo completamente desmentido. Além disso, o cético em nós tende a pensar que qualquer asserção confidente de uma proposição não-evidente, não-introspectiva, é dogmática. Por esse motivo, de novo o fundacionismo é mais provavelmente visto como dogmático se é concebido como uma resposta à formulação dialética do argumento do regresso. Pois ele pode, então, parecer colocar a questão contra o ceticismo. Porém, novamente, o ceticismo não está comprometido com a existência de qualquer conhecimento ou crença justificada; e mesmo um fundacionista que mantenha que exista algo assim, não necessita sustentar que nós sabemos diretamente que exista. É certo, os fundacionistas mais provavelmente do que os coerentistas dirão, que o ceticismo está simplesmente errado, pois os últimos (teoricamente) sempre podem traçar novos caminhos de justificação através da estrutura de suas crenças. Porém, se isto é verdadeiro, tem força limitada: talvez em alguns de tais casos os fundacionistas estariam justificados de uma forma tal que os impeçam de ser dogmáticos, e talvez o coerentistas estejam, com efeito, repetindo a si mesmos com uma reafirmação dogmático do começo ao fim.
Resulta, então, que o fundacionismo falibilista não é prejudicado pela objeção de dogmatismo, e o coerentismo não é imune a ela. Longe de ser dogmático, o fundacionismo falibilista implica em que, mesmo quando se tem uma crença justificada, pode-se não mostrar-se estar justificado, pode-se (e ao menos normalmente se pode) dar uma justificação para ela. Quanto ao coerentismo, ele também pode ser um refúgio para dogmáticos, ao menos para aqueles inteligentes os suficiente para encontrar um padrão coerente por meio do qual racionalizar as crenças que eles dogmaticamente sustentam.


Conclusão

A controvérsia fundacionismo-coerentismo não pode ser resolvida em um simples ensaio. Mas nós podemos apreciar algumas dimensões freqüentemente negligenciadas da questão. Uma dimensão é a formulação do próprio argumento do regresso; outra, é a distinção entre revogabilidade e dependência epistêmica; outra, ainda, é a distinção entre condições necessárias de conseqüência e constitutivas; e ainda outra é entre uma fonte desqualificadamente e uma condicionalmente básica. Ainda que a coerência não seja, nem uma condição necessária constitutiva para a justificação, nem uma fonte condicionalmente básica para ela, há ainda razão para considerá-la importante para a justificação. Ela pode até mesmo ser uma marca da justificação, um efeito comum das mesmas causas, por assim dizer, ou uma virtude com os mesmos fundamentos. A coerência é certamente significante ao sugerir uma restrição negativa sobre a justificação: pois a incoerência é um paradigma do que destrói a justificação.
Eu tenho discutido em detalhe a importância do problema do regresso. Importa consideravelmente se nós concebemos o problema dialética ou estruturalmente, ao menos na medida em que nós apresentamos o fundacionismo e o coerentismo em termos de sua capacidade para resolve-lo. De fato, ainda que tanto o coerentismo quanto o fundacionismo possam ser tornados plausíveis em qualquer concepção, o coerentismo é, talvez, melhor entendido como uma resposta ao problema em alguma formulação dialética, e o fundacionismo é, talvez, melhor entendido como uma respostas a ele em alguma forma estrutural. Considerando ambas as formulações do problema do regresso, eu tenho sugerido versões plausíveis, tanto do fundacionismo quanto do coerentismo. Nenhuma foi estabelecida, embora o fundacionismo falibilista tenha emergido como o mais plausível dos dois, ao esclarece-los, eu destaquei numerosas distinções: entre o processo e a propriedade de justificação, entre crenças disposicionais e disposições para acreditar, entre crenças epistemica e psicologicamente fundacionais, entre dependência e revogabilidade epistêmica, entre condições necessárias constitutivas e de conseqüência para a justificação e entre fontes condicional e desqualificadamente básicas. Contra este pano de fundo, nós podemos ver como o fundacionismo falibilista evita algumas das objeções comumente pensadas refutarem o fundacionismo, incluindo seu alegado fracasso em considerar a revogabilidade da maior parte e, talvez, de toda a nossa justificação, e o papel da coerência na justificação. De fato, o fundacionismo pode até mesmo considerar a coerência como uma marca da justificação; a tensão principal entre as duas teorias refere-se, não a se a coerência é necessária para a justificação, mas a se ela é uma fonte básica dela.
É apropriado, ao terminar, resumir algumas das considerações muito gerais que suportam um fundacionismo falibilista, uma vez que esta é uma posição que alguns tem, aparentemente, negligenciado - ou suposto ser uma contradição em termos - e outros não tem distinguido do coerentismo. Primeiro, a teoria provê uma solução plausível e razoavelmente clara para o problema do regresso. Ela seleciona o que parece ser a melhor opção entre as quatro e não interpreta essa opção em uma forma que torne o conhecimento ou a justificação, seja impossível, como um cético o faria, seja muito fácil de conseguir, como o seria se ele não requeressem fundamento algum, ou apenas fundamentos que podem ser obtidos sem o esforço da observação, do pensamento, ou outras formas de considerar a experiência. Segundo, ao trabalhar desde fontes racionais e experimentais que ele toma como epistemicamente básicas, o fundacionismo falibilista (em suas versões mais plausíveis) concorda com o senso comum reflexivo: os tipos de crenças que ela toma como não-inferencialmente justificados, ou como constituindo conhecimento não-inferencial, são muito mais aqueles que, ao refletir, nós pensamos que as pessoas estão justificadas em sustentar, ou em supor conhecer, sem nada mais além da evidência dos sentidos ou da intuição. Terceiro, o fundacionismo falibilista é psicologicamente plausível, em duas formas principais: a consideração que ele sugere da gênese experimental e inferencial de muitas de nossas crenças aparentemente ajusta-se ao que é conhecido sobre suas origens e desenvolvimento; e, longe de propor cadeias infinitas ou circulares de crenças, cuja psicologia é ao menos enigmática, ele permite uma consideração razoavelmente simples da estrutura da cognição. As crenças surgem tanto da experiência quanto da inferência; algumas servem para unificar outras, especialmente aquelas baseadas sobre elas; e suas forças relativas, suas mudanças, e suas interações mútuas, são todas explicáveis a partir das suposições que o fundacionista moderado sugere. Quarto, a teoria serve para integrar nossa epistemologia com nossa psicologia e mesmo biologia, particularmente no caso crucial das crenças perceptivas. O que causalmente explica porque nós as sustentamos - a experiência sensorial - é também o que as justifica.
Desde um ponto de vista evolucionista, além disso, muitos dos tipos de crença que a teoria (em suas versões mais plausíveis) toma como não-inferencialmente justificadas - crenças introspectivas e mnemônicas, assim como perceptivas - são claramente essenciais para a sobrevivência. Nós podemos necessitar de um mapa do mundo, e não meramente de um espelho, para navegar nele; porém, se a experiência geralmente não espelha a realidade, nós não estamos em posição de nos movermos para o nível abstrato no qual nós podemos traçar um bom mapa. Se um espelho sem um mapa é insuficientemente discriminador, um mapa sem um espelho é insuficientemente confiável. A experiência que não produz crenças não pode ser guiar-nos; crenças não fundadas na experiência não podem ser esperadas ser verdadeiras.
Finalmente, em contrário à acusação de dogmatismo, a teoria ajuda a explicar o pluralismo cognitivo. Dado que diferentes pessoas têm diferentes experiências, e que as experiências de qualquer pessoa mudam ao longo do tempo, as pessoas deveriam esperar diferir uma da outra em suas crenças não-inferenciamente justificadas e, em seu próprio caso, através do tempo; e, dado que a lógica não dita o que é inferido das premissas de uma pessoa, as pessoas deveriam esperar diferir consideravelmente também em suas crenças inferenciais. Seguramente, a lógica nos diz o que pode ser inferido; porém, ela nem força a inferência nem, quando nós a traçamos, seleciona qual nós iremos assumir entre as que são permitidas. Particularmente no caso da inferência indutiva, digamos, quando nós inferimos uma hipótese como a melhor explicação para algum evento enigmático, nossa imaginação entra em jogo; e mesmo que nós construíssemos desde as mesmas fundações de nossos vizinhos, nós freqüentemente iríamos produzir superestruturas completamente diferentes.
Um fundacionismo propriamente qualificado tem, assim, muito mais a recomendá-lo, e exibe muitas das virtudes, que comumente têm-se pensado, são características únicas das teorias coerentistas. O fundacionismo falibilista pode levar em conta as principais conexões entre coerência e justificação, e pode prover princípios de justificação para explicar como a justificação, a qual pode ser plausivelmente atribuída à coerência pode, também, ser encontrada - por caminhos suficientemente complexos e, algumas vezes, indutivos - em fontes básicas da experiência e da razão.[29]



[1] Para exposições recentes do fundacionismo ver, e.g., R. M. Chisholm, Theory of Knowledge (Englewood Cliffs, N.J.: Prentice-Hall, 1977 e 1989), e, especialmente, “A Version of Foundationalism”, Midwest Studies in Philosophy V (1980); William P. Alston, “Two Types of Foudationalism”, The Journal of Philosophy LXXXIII, 7 (1976); Paul K. Moser, Empirical Justification (Dordrecht and Boston: D. Reidel, 1985); e Richard Foley, The Theory of Epistemic Rationality (Cambridge, Mass.: Harvard University Press, 1987); e Capítulo 1, neste volume. Para exposições detalhadas do coerentismo ver, e.g., Willfrid Sellars, “Giveness and Explanagtory Coherence”, The Journal os Philosophy LXX (1973); Keith Lehrer, Knowledge (Oxford: Oxford University Press, 1974); Gilbert Harman, Thought (Princeton, N.J.: Princeton University Press, 1975); e Laurence Bonjour, The Structure of Empirical Knowledge (Cambridge, Mass.: Harvard University Press, 1985). Para discussões úteis acerca da controvérsia entre fundacionismo e coerentismo, ver C.F. Delaney, “Foundations os Empirical Knowledge - Again”, The New Scholasticism L, 1 (1976), que defende um tipo de fundacionismo; e Brand Blanshard, “Coherence and Correspondence”, in Philosophical Investigations, editado por Sydney e Beatrice Rome (New York: Holt, Rinehart & Winston, 1964), que defende seus pontos de vista anteriores contra objeções de críticos citados no mesmo capítulo.
[2] Bonjour, e.g., diz que o problema do regresso é “talvez o mais crucial em toda a teoria do conhecimento” (op. cit., p. 18); ele o considera a principal motivação para o fundacionismo (p. 17), e considera o fracasso do fundacionismo como “a principal motivação para a teoria da coerência” (p. 149).
[3] Chisholm parece levantar o problema dessa forma quando ele diz “Se nós tentarmos formular Socraticamente nossa justificação para qualquer alegação de saber em particular (‘Minha justificação para pensar que eu sei que A é o fato de que B’), e se nós somos implacáveis em nossa justificação (‘e minha justificação para pensar que eu sei que B é o fato de que C’), nós chegaremos, cedo ou tarde, a um tipo de ponto de parada (‘porém, minha justificação para pensar que N é simplesmente o fato de que N’). Um exemplo de N  pode ser o fato de que pareço me lembrar de ter estado aqui antes, ou de que agora algo me parece azul” (Theory of Knowledge, 1966, p. 2); cf. a segunda edição, 1977, especialmente pp. 19-20. Nesta e em outras passagens Chisholm parece estar pensando dialeticamente no problema do regresso e tomando uma crença fundacional como sendo de segunda ordem. Certamente ele está falando sobre a justificação de qualquer “alegação de saber”; porém esta e locuções semelhantes - tais como “alegação de conhecimento” - têm sido freqüentemente tomadas como aplicando-se a expressões de conhecimento de primeira-ordem, como quando alguém diz que está chovendo sobre a base de percepções que normalmente tomar-se-ia como produzindo o conhecimento de que está.
[4] Ver os Analíticos Posteriores, Livro 3. Tendo aberto o Livro 1 com a afirmação de que “Toda instrução dada ou recebida por meio de argumento procede de um conhecimento pré-existente” (71a1-2) e estabelecido, portanto, uma preocupação com a estrutura e as pressuposições do conhecimento, Aristóteles formulou o argumento do regresso como uma resposta à questão do que é requerido para a existência do conhecimento (que ele chamou científico) (72b4-24). (Tradução de Aristóteles a partir da versão inglesa de W. D. Ross.)
[5] No capítulo 8 da obra em que este texto originalmente apareceu eu apresento uma explicação detalhada acerca do que é, para uma crença, estar baseada em outra em um sentido relevante (grosso modo, inferencial).
[6] O lugar clássico deste argumento são os Analíticos Posteriores, Livro II. Porém, embora a versão de Aristóteles concorde com a que foi dada aqui, na medida em que sua conclusão principal é a de que “nem todo conhecimento é demonstrativo”, ele também diz que “desde que o regresso deve terminar em verdades imediatas, aquelas verdades devem ser indemonstráveis” (72b19-24), enquanto eu sustento que o conhecimento direto não requer indemonstrabilidade. Podem haver premissas apropriadas; a crença fundacional S simplesmente não é baseada nelas (eu também questiono a validade da inferência da segunda citação, mas eu suspeito que Aristóteles tinha fundamentos independentes para a sua conclusão).
[7] Para algumas das principais dificuldades encaradas pelas versões circulares, ver (“Overview”) e o Capítulo 1 da obra em que este texto originalmente apareceu.
[8] Na Meditação I, e.g., Descartes diz que “a razão já me persuade de que eu não deveria refrear menos cuidadosamente meu assentimento em matérias que não são inteiramente certas e indubitáveis do que naquelas que me aparecem como manifestamente falsas” (tradução desde a versão inglesa de Haldane e Ross).
[9] Não é incontroverso que saber-se uma proposição implica em crer-se nela, mas a maioria dos epistemólogos aceita a implicação. Para a defesa da implicação ver, e.g., Harman, op. cit., e meu Belief, Justification and Knowledge (Belmont, Calif.: Wadsworth, 1988).
[10] Ver, e.g., Richard Foley, “Justified Inconsistent Beliefs”, American Philosophical Quarterly 16 (1979). Eu critiquei a perspectiva da crença-infinita em “Believing and Affirming”, Mind  XCI (1982).
[11] Deve-se notar que a memória é diferente das outras três nisto: ela não é, aparentemente, uma fonte básica de conhecimento, como o é de justificação; i.e., não se pode saber algo pela memória a menos que se tenha chegado a sabê-lo de algum outro modo, e.g. através da percepção. Isto é discutido no capítulo 2 de meu Belief, Justification, and Knowledge. Cf. Carl Ginet, Knowledge, Perception, and Memory (Dordrecht and Boston: D. Reidel, 1973).
[12] A perspectiva de que uma tal experiência é um espelho da natureza é criticada em detalhe por Richard Rorty em Philosophy and the Mirror of Nature (Princeton, N.J., Princeton University Press, 1979). Ele tem em mente, entretanto, uma versão cartesiana do fundacionismo, a qual  não é o único tipo, e que implica características do “espelho” que não estão implicadas pela metáfora aqui utilizada.
[13] Isto não implica que existam objetos no campo visual que tenham suas próprias cores e formas fenomenais; a questão é, apenas, que há algum sentido em que experiências caracterizadas por  cor e forma (como quer que sejam analisadas) representam as cores e formas aparentemente instânciadas no mundo externo.
[14] Essa metáfora vem de D. M. Armstrong. Ver esp. Belief, Truth, and Knowledge (Cambridge: Cambridge University Press, 1973). Sua teoria da justificação e do conhecimento é confiabilista ao assumir tanto ser analisável em termos de seu ser produzida, quanto sustentada por processos confiáveis (tais como produção-de-crenças táteis), aquelas que (normalmente) produzem crenças verdadeiras mais freqüentemente do que crenças falsas. O fundacionismo pode, mas não precisa, ser confiabilista; e este capítulo pretende ser neutro com respeito à escolha entre perspectivas confiabilistas e internalistas. O internalismo é esboçado no Capítulo 10 deste volume [ou seja: da obra em que este texto originalmente apareceu], e eu remeto a controvérsia entre as duas perspectivas aos Capítulos 11 e 12. Para mais discussões, ver Paul K. Moser, Knowledge and Evidence (Cambridge and New York: Cambridge University Press, 1989), e R. M. Chisholm, Theory of Knowledge, 3a ed. (Englewood Cliffs, N.J.: Prentice-Hall, 1989).
[15] A cláusula (4) requer “outras-coisas-sendo-iguais” porque a remoção da justificação de uma fonte pode afetar a justificação de outra mesmo sem ser uma base de justificação da última; e o nível da justificação em questão eu tomo como sendo (como na formulação correspondente do coerentismo) aproximadamente apropriado ao conhecimento. A formulação poderia ser sustentada, entretanto, para qualquer nível dado.
[16] Para referências às principais descrições contemporâneas, especialmente àquelas de Lehrer e Bonjour, ver John B. Bender, The Current Status os the Coherence Theory (Dordrecht and Boston: Kluwer, 1989).
[17] Isto se aplica à Selllars, Lehrer e Bonjour e é evidente nos trabalho citados na nota 1. Suas posições coerentistas não são lineares. Para uma apresentação de uma dificuldade interna cercando o coerentismo linear e, provavelmente, também as versões mais plausíveis do coerentismo holista, ver (“the Overview”) e os Capítulos 1 e 2 do volume no qual este texto originalmente apareceu.
[18] Com esta questão em mente, é interessante ler Donald Davidson, “A Coherence Theory os Truth and Knowledge”, em Dieter Henrich, ed., Kant oder Hegel (Stuttgart, 1976). Cf. Jaegwon Kim, “What is ‘Naturalized Epistemology’?”, Philosophical Perspectives 2 (1988).
[19] Essa distinção parece ter sido freqüentemente perdida, e.g. em Hilary Kornblith, “Beyond Foundationalism and the Coherence Theory”, Journal of Philosophy LXXVII (1980), como argumentei (especialmente em relação ao trabalho de Kornblith) no Capítulo 3 da obra em que este texto originalmente apareceu.
[20] As prospecções para oferecer aos céticos um argumento plausível ao longo destas linhas são discutidas em detalhe no Capítulo 12 da obra na qual este trabalho originalmente apareceu.
[21] Uma exceção é David Shatz em “foundationalism, Coherentism, and the Levels Gambit”, Synthese 55, 1 (1983).
[22] Esta sugestão pode ser controversa: um teórico da virtude epistêmica pode argumentar que o traço de caráter é mais básico e colore a atitude, e que estes justos são bases para classificar as crenças enquanto sustentadas dogmaticamente ou de alguma outra forma. A maioria das questões será neutra com respeito a esta questão prioritária.
[23] Shatz, op. cit., p. 107, atribui uma sugestão semelhante a mim (por correspondência), e é apropriado sugerir aqui porque eu não pretende endossá-la.
[24] A acusação de dogmatismo tem sido trazida, e.g., por Bruce Aune em Knowledge, Mind and Nature, (New York: Random House, 1967), pp. 41-3,e, por implicação, por James Cornman e Keith Lehrer em Philosophical Problems and Arguments, 2a. ed., (New York: Macmillan, 1974), pp. 60-1. Alston vai longe o suficiente para dizer que “É a aversão ao dogmatismo, à aparente arbitrariedade das fundações putativas, que leva muitos filósofos a abraçar alguma forma de teoria da coerência ou contextualista...” (op. cit., pp. 182-3).
[25] Ver Alston, op. cit., para uma réplica (com o meu apoio) à acusação de dogmatismo.
[26] Uma formulação do problema do regresso por Chisholm é citada na nota 3. Para uma formulação contrastante ver Anthony Quinton, The Nature of Things, (London: Routledge & Kegan Paul, 1973), p. 119. Quinton, é interessante notar, é simpático ao tipo de fundacionismo moderado que iria servir como uma resposta ao problema em sua formulação.
[27] É natural ler Descartes como sustentando um fundacionismo de segunda-ordem; porém, se ele o fez, ao menos não estava comprometido com ele até seu fundacionismo forte. Este requer fundações indestrutíveis, mas é seu comprometimento com o conhecimento vindicativo em face do ceticismo que, aparentemente, o compromete com o nosso ter conhecimento de segunda-ordem. Questões semelhantes valem para Aristóteles que pode, de fato, ter tomado nosso conhecimento de segunda-ordem como sendo, ao menos, ilimitado; ele disse, e.g., “É difícil estar seguro sobre se alguém sabe ou não; pois é difícil estar seguro sobre se o conhecimento de uma pessoa está baseado em verdades básicas apropriadas a cada atributo - a diferença do conhecimento verdadeiro” (Analíticos Posteriores 76a26-28).
[28] Eu tenho em mente, para o requerimento de observação, BonJour, op. cit., e, para o requerimento motivacional, Keith Lehrer, e.g. em Knowledge.
[29] Este meu trabalho é extraído substancialmente de meu “Foundationalism, Coherentism, and Epistemological Dogmatism”, Philosophical Perspectives 2 (1988), 407-59 (editado por James E. Tomberlin). Eu agradeço à Louis P. Pojman por muitos comentários úteis sobre um esboço de boa parte do material e pela permissão de usar passagens selecionadas de meus dois capítulos em seu livros The Theory of Knowledge: Contemporary Readings (Belmont, Calif.: Wadsworth, 1992).

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